sábado, 17 de janeiro de 2015

Tenho

Uma caixa cheia de cartas. As cartas que o meu avô escreveu à minha avó durante o namoro, cartas que ela guardou religiosamente e que eu agora guardo por ela. Não tenho as cartas que ela lhe escreveu, que os homens são menos dados a coleccionar recordações, mas posso imaginá-las pelas respostas dele. Quase posso imaginar aquela carta que ela lhe escreveu naquele dia de Agosto de 1936, aquela que foi escrita num só fôlego, com breves paragens para molhar a caneta no tinteiro, quase posso ouvir o aparo a arranhar o papel, veloz, com com uma fúria contida, aquela carta em que ela lhe dizia:

Algés, 12 de Agosto de 1936

Meu querido Manuel,

Continuamos a banhos na praia de Algés. O tempo tem estado muito agradável e os dias quentes e sem vento, tão quentes que nos obrigam a ficar recolhidos na sombra, sem mais que fazer se não conversar com esta ou aquela. Imagina a coincidência que, dois toldos abaixo do nosso, está uma família do Algarve, os Cardoso Machado, que, tal como nós, escolhem sempre esta praia para passar a temporada. A Lili, que como bem sabes é menos acanhada do que eu, chegou à fala com as meninas Cardoso Machado através da Mitó Gomes de Albuquerque, pessoa das nossas relações e amiga de ambas as famílias. Pois vê lá tu que as meninas Cardoso Machado lhe contaram do sururu que a chegada de um médico solteiro e bem apessoado tem causado aí pelos Algarves. Parece que se fazem apostas entre as meninas casadoiras sobre quem o vai levar ao altar e, dizem elas, ele parece gostar das atenções e devoção que elas lhe prestam.

Escrevo-te hoje para te dizer que, na verdade, e à excepção dessa tua fila de pretendentes, nada mais obsta ao nosso casamento. Nem o pai, que de início se mostrou tão relutante ao nosso namoro, nem mesmo a tia Violeta, que foi radicalmente contra, mantêm as suas posições. Assim, querido Manuel, insto-te a que pegues na tua caneta e me peças em casamento. Caso contrário, e caso verifiques que não tens para isso ânimo, escusado será que me voltes a escrever.

Da tua,

J.

Casaram pouco tempo depois.

27 comentários:

  1. Conheci bem a praia de Algés, numa versão já sem toldos e com muitos cactos e lixo. Mas ainda assim, pelos vistos, plena de histórias que ficaram gravadas nos seixos. E nessas cartas. Gostei muito, Palmier.

    Bom fim de semana.

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  2. Adoro essas memórias, meus pais tb namoraram por carta, numa vinda a Portugal ficou o meu pai na casa do irmão, a minha mãe aprendia costura com aquela que viria a ser sua cunhada, o meu pai diz que se metia com a minha mãe apanhado os alfinetes, qd voltou para o Canadá pediu a morada da minha mãe e começou a escrever lhe cartas, chegaram a pensar casar cá e a minha mãe iria com ele mas os meus avós choravam baba e ranho pela filha mais nova, acabaram por casar e viver na casa ao lado dos meus avós.
    O meu pai faleceu á 9 anos e dias depois de ter morrido a minha mãe ao serão junto á lareira foi lendo as cartas e queimando aquelas como ela disse " só interessavam a mim e ao teu pai ,ele já não está cá para recordar mos juntos".

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    1. (é pena Akombi... percebo que as pessoas queiram preservar o que lhes é mais íntimo, mas a verdade é que, passados estes anos, é muito bonito poder olhar e ler o que ficou dito :)

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  3. Adorei ler. Aposto que a avó está a sorrir feliz á ideia de ter uma neta clarividente, que lhe adivinhou as palavras que nunca chegou a ler, mas intuiu.
    Antigamente, Algés era bonita. Frondosa, tinha o mercado, a praça de touros e o fascinante aquário um nadinha mais à frente . A praia era agradável e tinha barraquinhas. A minha tia Adelaide vestida até ao pescoço, com óculos escuros e lenço na cabeça, levava-nos a banhos. Eu com um fato de banho verde com folhinhos, e o meu Mano, com um fato inteiro de alças e perna curta ... Comprava-nos um pirulito com bola... :) :) :)

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    1. (não li, é verdade. Mas a história do ultimato para o casamento foi muitas vezes repetida lá em casa :D)

      Acho que a praia de Algés, na altura, era o spot mais in! ;DDDDDDDDDDDDD

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  4. Uma parte de mim, a que adora mulheres com fibra, mantém a esperança que a carta não seja apenas adivinhada mas antes real. Maravilhoso!

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    1. A história é absolutamente verdadeira! A minha avó falava muitas vezes do "ultimato" :DDDDDDDDDD

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  5. Tão fofinho.....

    Vera Benavente
    Www.loveadventurehappiness.blogspot.com

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    1. Palmier, esse espólio é verdadeiramente espetacular. Já o tem há muito tempo?

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    2. Há dez anos. Desde que a minha avó morreu.

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    3. Lindo, verdadeiramente lindo. Não sei se já o leu todo mas, essas cartas, são verdadeiras lições de vida, com toda a certeza.

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    4. Não li tudo. Vou lendo, de vez em quando... a letra é quase impossível de decifrar... :)

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  6. Fabuloso. Mulher de fibra :)
    (Também tenho uma caixa com cartas trocadas entre mim e o marido quando começámos a namorar à distância, ele também as guardou, mas já me ocorreu que a descendência vai certamente ler e não me agrada mesmo nada...) :)

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    1. :))))))

      (depois de morrermos não sei se será assim tão grave... afinal já cá não estamos para sentir vergonha :)

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  7. Também tenho uma caixa dessas com cartas da minha avó para o meu avô. Não sei se não as chegou a enviar ou se foi ele que as guardou. Só sei é que aquilo é de uma quentura que nem te digo! Praticamente a anatomia de grey de 1930! xD

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  8. Respostas
    1. Mariana, os nomes foram ficcionados :D foram os primeiros que me vieram à cabeça :) foi uma coincidência.

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