O afã começa logo da parte da manhã, com o
cuidado que o Senhor Pereira dispensa à arrumação da sala de reuniões,
organização dos vários exemplares do Relatório e Contas finamente encadernados
e perfeitamente alinhados em cima da mesa, garrafinhas de água acompanhadas dos
respectivos copos e, para rematar, canetas e blocos de notas que ficam
invariavelmente por utilizar e que passam de ano para ano como relíquias
preciosas.
Depois, aí pelas duas e meia da tarde,
começam a chegar os convivas, para a Assembleia que se encontra marcada para
uma hora mais tarde. No fundo trata-se de um dia especial, que não permite
atrasos ou contratempos de qualquer espécie, pelo que mais vale prevenir e
chegar um "bocadinho" mais cedo.
A primeira a apresentar-se é
invariavelmente a Senhora Dona Teresina, viúva de um dos sócios, leva o seu
papel muito a sério e, com os seus oitenta e seis anos apresenta-se munida da
sua pastinha preta de aspecto profissional, que contém apenas uma caneta, a
única caneta com que consegue assinar, aquela com que consegue ludibriar o
Parkinson. Pergunta sempre pela família e pelos meninos e senta-se numa cadeira, a
olhar em frente, à espera. A Senhora Dona Teresina sofre muito dos nervos por
causa dos senhores dos bancos, que lhe telefonam amiúde com propostas indecorosas
de depósitos e aplicações que a Senhora Dona Teresina não compreende.
Ultimamente tem sido fustigada por telefonemas do Novo Banco, ou “os verdes”,
como lhes chama, que lhe explicam que os outros, os da Caixa Geral, têm lá
muito dinheirinho e que a Senhora Dona Teresina havia de ser boazinha e havia
de passar uma parte do dinheiro que tem nos "outros" aqui para nós,
para ficarmos todos mais equilibrados, e a pessoa ainda lhe diz que não vale a
pena ficar naquele estado de nervos, que a Senhora Dona Teresina diga lá aos
senhores do Novo Banco que se lhe voltarem a falar nesse assunto tira de lá o
dinheiro todo e que o deposita no Totta, mas a Senhora Dona Teresina sente medo
dos senhores do banco, que é uma pessoa sozinha, e hoje em dia nunca se sabe, “ainda me fazem mal!” De qualquer forma,
não adianta dizer-lhe grande coisa, que a Senhora Dona Teresina não ouve nada
porque se recusa a usar o aparelho auditivo. O segundo a chegar é o Senhor
Manuel, sobe a escada de bengala mas abandona-a à porta, para parecer mais
jovem que os seus oitenta e nove anos. O senhor Manuel não perde tempo e fala
de todos os médicos a que tem ido, e têm sido muitos, tínhamos ali conversa
para vários dias, doenças, medicamentos e mezinhas, consultas, cirurgias,
hospitais, anestesias e analgésicos, tratamentos e fisioterapias, o que se
quiser, como na feira, tudo contado com incrível detalhe, detalhes que na
verdade ninguém quer saber mas que todos ouvem acenando com fingida atenção. De
seguida chegam os restantes sócios, o ROC, o TOC, e ali ficam a conversar sobre
o estado das coisas, o Governo e os impostos, que já se sabe, isto está tudo
muito mau e a tendência é para piorar. Por fim, às quinze e trinta em ponto, chega finalmente o Presidente da
Assembleia-Geral, cargo que é ocupado pela mesma pessoa vai para cima de trinta
anos. O Presidente, advogado outrora famoso, foi refinando com a idade, e
agora, aos oitenta e oito anos e assumiu-se claramente como um machista
arrogante e abjecto que nutre um profundo desprezo por todas as mulheres que se
atrevam a ser mais do que umas simples e extremosas donas de casa, uma espécie
de militante do Estado Islâmico, versão 1940, com quem, naturalmente, mantenho
um sanguinário diferendo vai para cima de dez anos. Pois então o nosso Presidente
entra, cumprimenta-me em primeiro lugar, e fá-lo como habitualmente, "gosto em vê-la Xôtora, ah, mas está com
muito melhor aspecto!” E depois de me avaliar de cima a baixo, larga a
primeira granada, "engordou aí um
quilo e meio, não?" fugindo de imediato, antes que lhe possa sequer
responder, apressando-se a cumprimentar todos os presentes como se nada fosse.
Feitos todos os cumprimentos, sentamo-nos finalmente à mesa e, num ambiente
vagamente religioso, dá-se finalmente início à Assembleia-Geral. Ao mesmo tempo
que se lê o ponto um da Ordem de Trabalhos, circula o livro de presenças que
vai sendo assinado à vez. É portanto enquanto se analisa o exercício de 2014,
que a Senhora Dona Teresina abre a sua pasta preta de executiva, de lá retira a
sua caneta mágica, respira fundo como que para ganhar coragem para aquela
pesada responsabilidade anual, profere um audível “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, benze-se e então
sim, guiada pela força de Deus, arremete finalmente contra o livro de presenças,
para aí deixar a sua assinatura, a prova do cumprimento da sua obrigação.
Nisto, e enquanto se analisam os números, o Presidente pára tudo, volta a olhar
para mim - que tinha passado a manhã de um lado para o outro, à chuva- "a Xôtora tem um penteado novo?"
"Não Xôtor, não tenho", "ah, estou a ver... foi então ao
cabeleireiro?" "Fui sim, Xôtor, fui fazer o meu
Penteado-Especial-Assembleia", e com esta terrível dúvida esclarecida
passamos então à votação das contas de 2014, através do método de sentados e
levantados, que reforça a ideia sacro-santa do evento - quem é a favor deixa-se
ficar sentado, quem é contra deve levantar-se -, método terrível, que toda a
vida impediu os sócios minoritários, já de si inibidos pela situação, de votar
contra fosse o que fosse, obrigando, aliás, a que todos fiquem absolutamente
imóveis, não vá dar-se o caso de um qualquer gesto ser tomado como um voto
contra. Foi enquanto se analisava o ponto seguinte da ordem de trabalhos que se
abriram umas garrafinhas de água para descontrair, que isto de votar contas por
unanimidade é coisa cansativa, uma água para aqui, outra para ali, e a Senhora
Dona Teresina, quer uma aguinha? E a Senhora Dona Teresina estica o braço, olha
fixamente para o relógio (?) e, depois de uma pausa de vários segundos para estudar
o mostrador, responde convicta: "ainda
não, obrigada!". Por fim, e uma vez analisados e votados todos os
pontos da ordem de trabalhos, são então feitos os costumeiros votos de louvor,
louvam-me a mim, louvam os outros dois gerentes, homens de barba rija, louvam-nos
muito com diversos hossanas e, depois de termos sido profusa e devidamente
louvados, dá-se por encerrada a Assembleia, e o
Xôtor, já esquecido da sua bomba inicial volta a dizer-me "Muito gosto em vê-la! Está com muito bom parecer! À última vez
que a vi tinha uns bons quilos a menos. Talvez cinco ou seis, não? Foi Xôtor,
engordei quatro ou cinco agora mesmo, durante a Assembleia...
Daqui a uns dias havemos de receber o
livro de actas, porque a nossa acta ainda é passada ao livro, com letra
desenhada, que o Senhor Presidente não acredita nessa coisa da informática, que
não é de fiar e, miraculosamente, vamos voltar a constatar que lá constarão os
louvores dirigidos aos homens de barba rija, mas que o senhor Presidente vai
voltar a fazer desaparecer os meus próprios louvores, e, caramba, nunca lhe
hei-de perdoar isto do furto dos meus louvores! É que uma mulher ressente-se
com estas coisas! Levem-me tudo, mas deixem-me os meus louvores!
Engordaste quatro ou cinco kilos na assembleia? Ficaste inchada com os louvores que depois o Senhor Presidente te furta. daí apareceres sempre tão elegante nas sessões fotográficas.
ResponderEliminar(escusado será dizer que a tua escrita é deliciosa)
É verdade... tenho esta incrível capacidade de engordar permanentemente e de todas as vezes que o encontro! :DDDDDDD
EliminarÓ pá, isso não se faz!
ResponderEliminarCaramba o homem sempre a implicar contigo e depois ainda tira de lá os louvores???
Coitadinha Palmy, mas olha, ele já tem uma certa idade não é?
Entretanto muda-se o presidente não?
É incrível, não é? Como é que uma pessoa depois vive sem os seus louvores?!
Eliminar(já está tão velhinho... faz parte da mobília...)
:D Eu se fosse à Palmier pedia que ficasse em acta o seu peso exacto, só para que o Xôtor não tivesse por onde pegar na próxima reunião.
ResponderEliminarHomens à antiga, é o que é, temos um destes na família, o bisavô paterno de macaquitos mas que tem quebrado bastante desde que eu entrei para a família. Sou a única mulher que pode falar de futebol com os homens e quando é preciso tartar de algum asunto mais importante sou eu que falo com ele, já que mais ninguém o enfrenta. E ele respeita-me, essa é que é essa!
:DDDDDDDDDDDDD
EliminarPara o ano levo uma balança! Por via das dúvidas peso-me antes e depois!
(este nunca respeitará mulher alguma...)
O quê, mas vovês não se pesavam já antes de todas as AG?! O senhor Pereira é sempre tão diligente deixou passar um requisito fundamental como esse. Não sei não, Palmy, mas se calha algum sócio, ou o próprio senhor presidente, reparar nisso é capaz de invocar a nulidade das últimas aprovações de contas. Vê lá isso, ainda por cima se o Senhor presidente é um ex-causídico de renome... :DDDD
EliminarAh, esquecia-me disto: PALMIER A PRESIDENTE, JÁ!
Vou lançar a candidatura! :DDDDDDD
EliminarLembrei-me da minha mãe que toda a vida foi muito elegante, alta e magra. Tinha uma amiga, que tinha uma prima, completamente o contrário da minha mãe, baixa e muito gorda. Essa senhora sempre que via a minha mãe , dizia , invariavelmente: M. estás mais gorda!
ResponderEliminarEste senhor também sempre foi super gordo! :D Mas ele diz isto a TODAS as mulheres...
EliminarEu sou magra e há uma pessoa ao contrário de mim, qu sempre que me encontra diz: Estás mais gorda não estás???? Peso o mesmo há 15 anos....
EliminarSabes o que sinto neste momento: Felicidade. Quero um livro teu. Já!
ResponderEliminar:D
EliminarCalculo que a D. Teresina tenha ouvido muita coisa da reunião. E folgo em saber que cumpre as horas para beber água, não fosse o diabo tecê-las.
ResponderEliminarQuero tal uma crónica semanal destas maravilhosas histórias! Não me enjoava, garanto.
Nada! Não ouve nada! Está só ali, seráfica :D
Eliminar(era preciso que todas as semanas houvesse uma história assim, divertida :D)
Mas, na minha mente, a vida da Palmier é divertida até a dormir!
EliminarMas aí é que está: o momento não é divertido, a Palmier é que os torna. Aí é que reside a magia ;)
Está visto que foi da água. Palmier, envolvida que está na dieta de cutxi, habituou-se aos 5l de água diária. Foi por isso surripiando, sem sequer se dar conta, as garrafinhas que Dona Teresina ia mandando vir, para o caso de chegar a hora do golinho.
ResponderEliminarO seu texto é tão engraçado.
:D
Eliminar(obrigada :)
Merece todos os louvores!
ResponderEliminarTodos, todos!
EliminarMuitos louvores|
Eliminar:)
EliminarTambém quero o livro!
ResponderEliminar:)
EliminarSabe que se um dia lhe disser que tem uma legião de fãs e que, inclusive muitas delas acham que deveria ser presidente, o exmo, sr. tem um enfarte?
ResponderEliminarMera sugestão...
EliminarPara a próxima não me escapa! :DDDDDDDDDDD
;))))
ResponderEliminarConsegui identificar a Dona Teresina como uma condómina que tive ali no Lumiar, madeirense, com as manitas sempre trémulas, o pescocinho muito magro e pelado, e um cabelame cheio de laca.
Grande memória me trouxeste.
:)))))))
EliminarÉs maravilhosa, caramba!
ResponderEliminar<3 <3 <3
EliminarQuando li a parte do Benzer só me lembrei do "Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, bicha volta a ter o teu encanto!" By Bicha do Demónio. Esse xotor faz lembrar o Mr. Scrooge do escritório onde trabalhei alguns anos com os tubarões da labuta jurídica. Era uma bela peça!
ResponderEliminarAh... mas o teu Mr. Scrooge é melhor que o meu! No escritório do meu, mulher não entra! :D
EliminarLouvores ao texto!!! Muitos louvores!!!
ResponderEliminarQue venha o livro!!
Finalmente! Os meus louvores! Estes ninguém mos tira! : DDDDDDDDDDDDDD
EliminarEscrita maravilhosa Palmier, é um prazer passar por aqui!!
ResponderEliminarMarília
Obrigada :)))))
EliminarEste texto está uma delicia! Esse Presidente é um homem .....nem consigo classificar!
ResponderEliminar:))))
ResponderEliminarInspiração ao quadrado: para escrever o texto e aquela outra, profunda e Ohmmmmm, para entrar na sala de numa assembleia geral que quase parece um conto do Edgar Allen Poe. :) :) :)
ResponderEliminarDelicioso! Está de louvar, Xôtora Palmier! :)
ResponderEliminarTão giro, fartei-me de rir. Célia
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