O meu pai é alto, tem barba, óculos redondos e fuma cachimbo. No Verão usa um Panamá branco. Uma vez, quando eu tinha uns 6 anos, cortou a barba e veio visitar-me. Não consegui olhar para ele nem uma só vez durante o fim-de-semana inteiro. Depois a barba cresceu e voltou a ser novamente o meu pai. Um dia fomos à praia da D. Ana, ou Donana como sempre lhe chamei, e estavam ondas. Estávamos à beira mar e o meu pai estava de pé e era mesmo, mesmo alto. Eu cabia debaixo das pernas dele e agarrava-me ora a uma, ora a outra para não ser levada pelas ondas. A areia da praia da Donana é grossa e não se agarrava às pernas e isso era bom, mas não dava para fazer bolinhos e isso era mau. Noutros dias íamos à Meia-Praia e o meu pai ficava a ler, deitado de barriga para baixo, a abanar a perna e eu ia para a beira mar fazer castelos. Ás vezes brincava um bocadinho comigo. Falava-me do povo da areia que era microscópico e defendia o meu castelo contra o mar que o queria destruir. O meu pai deixava-me comer quatro Cornetos. Eu bem sabia que aquilo era um exagero mas eu ia pedindo e ele ia-me dando. Também me deixava ficar dentro de água até ficar roxa. Nunca me mandava para a toalha e aquilo parecia-me mal. Afinal eu tinha frio. Um dia resolvi trazer da praia um frasco de Delial cheio de carochas pretas. As carochas roeram o frasco e fugiram. Criei um ecosistema de carochas em volta da casa do meu pai. Ainda hoje há lá carochas pretas da praia. Ás vezes levava-me com ele para as consultas e eu ficava sentada na secretária ao lado dele a assinar as receitas. O meu trabalho era falsificar-lhe a assinatura e ele verificava se eu era ou não uma boa falsificadora. Nunca nenhuma foi recusada na farmácia pelo que presumo que tivesse alguma habilidade. Eram consultas estranhas, aquelas. Para além do nevoeiro provocado pelo fumo do cachimbo e dos doentes mentalmente instáveis, estavam presentes enfermeiras e havia pessoas que entravam e saiam como se ali nada se passasse. Mas parece que ninguém se importava muito. Os doentes variavam do maníaco ao catatónico. Lembro-me de uma velhota com a boca pintada de encarnado e com o baton todo esborratado que, excitadíssima, queimou o vestido de nylon umas quatro ou cinco vezes, com um cigarro que sugava como se o mundo fosse acabar naquele preciso momento, aqueles cigarros que ficam com um borrão gigante triangular e todos encarquilhados e fininhos tal é o desespero com que são fumados. O meu pai tinha um cão itinerante que aparecia para comer e as conversas que mantinham alternavam entre o francês e o latim. Ás vezes íamos passear a pé até à Albardeira Alta, levávamos uns frascos, uma lupa e uma pinça para apanhar insectos. De vez em quando tínhamos sorte e apanhávamos um camaleão. Depois voltávamos, o meu pai recolhia aos seus aposentos e eu ficava sozinha à espera que ele acordasse. Aproveitava para, às escondidas, comer um pacote inteiro de Belinhas acompanhadas de Tonosol, um multivitamínico para abrir o apetite. As Belinhas eram redondas e em forma de estrela e o Tonosol era para tomar uma colher por dia, mas era tão bom que eu bebia o frasco inteiro sentada em cima da máquina de lavar loiça. Á noite contava-me histórias. Mas havia uma de que eu não gostava. Era aquela sobre uma tia dele, uma velha tia cientista que descobria uma poção para rejuvenescer e que tinha resolvido experimentar em si própria. Tomou uma dose excessiva e transformou-se num bebé. Depois, ele tinha sido obrigado a tomar conta da sua velha tia bebé que, afinal, era eu própria. E eu não queria ser a velha tia do meu pai.
Lembro-me de teres abordado já a estória da tia que afinal eras tu.
ResponderEliminarAs boas memórias são o melhor que temos; são aquilo que nos aquece o coração quando tudo à nossa volta parece desmoronar...
Abençoados os que a têm; são o único capital seguro :))
Adorei ler. Senti- me roxa na água fria, senti o calor da areia nos pés, soube-me a boca a Tonosol e a Belinhas... viajei cosigo no tempo... :)
ResponderEliminarAmei. :)
ResponderEliminarMuito, muito bom Palmier. O meu pai brincava comigo também, mas a minha mãe nunca. Nunca. Agora também me fez lembrar aqui uma série de coisas que não me apetecia. Mas às vezes é bom recordar.
ResponderEliminarGosto muito do seu blog.
Mulher, tu vais ser presa!
ResponderEliminarFalsificas notas, assinaturas... que mais Palmier??
As Belinhas eram tãooo boas! E acho que ainda se vendem ou umas muito parecidas, chamadas Joaninhas!
É tão bom ter recordações destas! :)
ResponderEliminarUm regresso ao passado, muito bonito, senti uma aparente solidão tua em criança.
ResponderEliminarUm dia irás ser uma velha tia de alguém:)
Tenho poucas recordações da infância. Não por ter sido má, mas por ter sido um pouco vazia... O meu pai costumava contar-me uma história. Dizia que um dia eu estava com a minha avó numa floresta e que ouvimos alguém chorar. Quando seguimos o choro, encontrámos um bebé abandonado junto a uma árvore. Estava cheio de medo e de frio. Levámo-lo para casa e cuidámos dele até ele crescer e ficar adulto. E aquele bebé era o meu próprio pai. De cada vez que ele contava isto eu chorava e confirmava que era verdade. E, na minha cabeça de adulta, ainda me lembro de ter encontrado um bebé. Mas sei que não encontrei. O que é engraçado é que eu nunca me questionei o porquê de aquele bebé ter crescido mais depressa do que eu e ser meu pai, era mesmo muuuuito pequenina :) Depois cresci, deixei de ser perfeita e, na minha adolescência, o meu pai foi embora, e deixou de me contar histórias.
ResponderEliminarRevejo-me na parte da praia D.Ana e da Meia Praia, sem bem a minha infância foi mais passada em Porto Mós!
ResponderEliminarPara Porto-de-Mós, ia com a minha avó. :)
Eliminare à batata? e à do pinhão? e aprender a andar de bicicleta no jardim? Ui.....Tantas! mas tantas redordações que se me alembraram...
Eliminaré tão bom recordar, adorei a minha infância, a crescer numa quinta inserida numa localidade de vivendas a onde era-mostodos uma familia ( ainda somos a apesar de já mtos desaparecimentos naturais da vida) a onde tudo era perfeito, a onde era a sombra do meu irmão mais velho 18 meses, a onde as arvores carregadas de frutos eram o nosso reino e ganhava quem conseguisse comer mais fruta, havia o vizinho Miguel que era tb como um irmão mas viria a falecer aos 21 anos num acidente de moto ( uma tristeza que ainda está comigo, ele que foi o meu 1º amor aos 6 anos), o fazer carrinhos de rolamentos, fatos de alcatifa que ia-mos buscar as uns armazens ali perto, no verão o ir para a praia ali perto, o meu pai a apanhar cadelinhas com um arrastão que agarrava á cintura, eu e o meu irmão besuntados de argila que havia junto á falésia, era uma praia quase só nossa agora é uma epidemia com o condominio ali perto, as patuscadas de verão, a familia sempre reunida, uma infância tão preenchida.
ResponderEliminarGosto tanto destas partilhas.