O dia era como hoje, de chuva. Ela via através da janela embaciada a vida a passar lá fora, na rua. As pessoas que, escondidas por baixo dos guarda-chuva molhados, corriam atarefadas, em zig-zag, evitando as poças. De vez em quando passava alguém que desafiava a tempestade de
cabeça descoberta, alguém que passava a correr, contra o vento, e ela seguia-o
com os olhos, até desaparecer naquela esquina lá à frente. Pingos grossos escorriam pelos vidros, fazendo chorar a janela por onde entrava aquele dia cinzento, e ela ali estava, nariz colado ao vidro, sentada sobre aquele banquinho
almofadado, aninhada, confortável na sua imobilidade. Quando a chuva abrandava
e os chapéus se fechavam, tentava ver por entre os transeuntes se algum era o
seu, aquele que nunca sabia quando chegava ou a que horas vinha, aquele que
nunca lhe dava satisfações, que lhe passava a mão distraidamente pela cabeça e batia a porta com um simples até logo, com a
certeza que ela ainda lá estaria quando regressasse. E assim era, ela não esmorecia,
dia após dia fitava a rua em busca daquela cara, à escuta daqueles passos na
escada, daquele barulho da chave a rodar na fechadura. Às vezes parecia-lhe
vê-lo, animava-se, esticava o pescoço, levantava-se com esperança a reluzir nos
olhos castanhos quase pretos para, logo a seguir, respirar fundo, o desânimo
a tomar-lhe conta dos movimentos, e perceber que fora engano. Mesmo nos dias de
chuva via muitas coisas através da sua janela embaciada. Via os donos que passeavam os seus cães saltitantes, gostava de os ver a afastá-los das poças, a
insistirem num xixi rápido enquanto eles, matreiros e de nariz no ar,
prolongavam a coisa até ao infinito, já conhecia aquelas pessoas, a velhota
que, com movimentos lentos, varria as folhas castanhas para longe da sua porta,
o arrumador que molhado até aos ossos dava sinal de um lugar vago que todos os
condutores viam sem precisar de ajuda. E os dias passavam assim, numa sucessão
interminável, a luz do dia a esmorecer, as lâmpadas amarelas a acender nos
candeeiros da rua, e ela ali, no escuro, ainda à janela, sempre à janela, à
espera, à espera dele. Quando a esperança a abandonava deixava-se ir, a cabeça
começava a pender, os olhos a fechar, a cair naquele sono leve cheio
de sonhos de dias de Verão e corridas na relva. E no momento em que desistia, no momento em que, desiludida, virava costas à rua, ele voltava, entrava em casa e ela, com os olhos transbordantes de
amor, corria na sua direcção como se o não visse há uma eternidade, saltava-lhe ao
pescoço, para o colo, com uma alegria desmedida, incompreensível, depois corria
para aquele armário onde estava a trela e, com uns latidos estridentes abanava a cauda e corria,
a derrapar, em direcção à porta da rua.
ah ah ah ah ah
ResponderEliminarSó na 6ª frase percebi o alcance da coisa, ainda assim enganou-me, achei que ia finalizar com uma referência a pequena Cutxi.
(fica-me a dúvida se a piada é dirigida aos das lágrimas fáceis, se aos do sexo que afinal é uma cadeira)
Vejo François Ozon pegar neste argumento para um filme :)
ResponderEliminar(Sous la pluie -- voluntario já o título :))
Boa noite, Palmier :)
Se não fosse a menção aos latidos , ter-me-ia levado o pensamento para a tristeza de dias sós e sombrios, com mais de 50 tons de cinzento a entrar janela adentro.
ResponderEliminarUsas, mais, vírgulas, do, que, o, Saramago.
ResponderEliminarahahahahahhahahahahahahhahahahahhahaha
EliminarPalmier a dispensar o Nobel e a atirar-se ao Guinness! :DDDD
Não com tantos pormenores, nem tão bem elaborado, mas penso muitas vezes nos meus pequenos grandes gatinhos o dia todo sozinhos em casa a espera que eu chegue. Às vezes quando chego eles estão à janela, mas assim que chego a porta, já eles estão do lado de dentro ansiosos que eu chegue e lhes dê mimos. Muitas vezes durante o dia penso nos meus ricos gatinhos, e nas saudades que tenho deles.. sou uma lamechas, eu sei.
ResponderEliminarBeijos
Depois de muito pensar e não compreender (snif) resolvi ir ler uns blogues... E fez-se-me luz Graças a Deus! Hehehe boa!
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