E depois daquela noite na colectividade, ficou ponto assente
que o senhor Valente iria até Fátima para agradecer a conveniente aparição da Nossa Senhora. E, assim foi, em chegando a Maio, o senhor Valente, rodeado da
população em êxtase, e por entre os gritos de “coragem” e "força", lá partiu em
peregrinação. Foram dias e dias de caminho, dias que lhe deram cabo dos
sapatos-ténis, uns muito jeitosos que comprou no Continente dos Salgados especialmente para esta empreita,
passando depois as moléstias a atacar os pobres pés do senhor Valente que nunca se tinham debatido com um
tão longo percurso. Mas eis que, depois de todo este sofrimento, o senhor
Valente vê aparecer diante de si, finalmente, a Cova da Iria. Foi um momento de
grande emoção, o momento da chegada. Mas, em bom rigor, não se pode dizer que
tenha sido assim tão melhor que o da partida. É que foi no dia da partida que o
senhor Valente entrou naquela loja mesmo ali junto ao recinto, para escolher,
finalmente, a Nossa Senhora que ia levar para casa. Ah… iam ficar todos
basbaques quando A vissem! Mesmo aqueles que, nas suas costas, duvidavam da palavra da Rosa,
ah-ah, agora haviam de engolir as suas próprias palavras, os cabrões! Foi com
este sentimento extremamente cristão que o senhor Valente se decidiu imediatamente pela maior Nossa Senhora que ali se
encontrava, a tal, a do manto azul. Nem hesitou um segundo quando lhe disseram
o preço; aquela, desse por onde desse, já era a sua Senhora. Depois de embrulhada com todo o jeitinho, para não se partir pelo caminho, o senhor Valente pegou na sua própria Nossa Senhora e
levou-a por ali fora, ao colo, até ao terminal dos autocarros. Ora a raça da Nossa
Senhora era pesada como chumbo, pelo que um percurso que demoraria não mais de dez minutos, se
transformou numa caminhada de quase uma hora, com paragens para descanso e copos-de-três. Mas, ainda assim, era com um desmedido orgulho que o senhor Valente
desfilava por Fátima abraçado ao seu embrulho. E disso mesmo informou a menina do guichet
enquanto comprava o bilhete:
- Esta aqui – e, para que não restassem dúvidas a quem se
referia, acompanhava a frase com umas cachaporras na cabeça da Nossa Senhora -, já não a largo! Vai comigo e ao meu lado! Nem
pensar que m’a metem no porão, q'isso até deve ser pecado!
Só quando menina da bilheteira lhe disse que, para levar a Nossa Senhora no interior da camioneta, tinha de pagar um bilhete extra é que o senhor Valente percebeu, com espanto, que nem todos partilhavam da sua reverência.
- O’messa?! Então a Santinha tem de pagar?
Que sim, que era um volume demasiado grande e que, em
ocupando um lugar, tinha de pagar tal’qual as outras pessoas. E o senhor
Valente, homem orgulhoso, lá puxou da carteira, tirou o molhinho de notas, c'uma pessoa tem de estar prevenida, molhou o dedo na saliva, passou as notas uma a uma entre o indicador e o polegar, e, encontrada a quantia certa, bateu com o dinheiro no balcão de fórmica e pagou, decidido, o bilhete para a Sua
Senhora. É claro que, quando se sentou
na camioneta, logo na primeira fileira de lugares, aqueles quando se entra do lado esquerdo, a Nossa Senhora no banco junto à janela e ele no que fica junto ao corredor, o
senhor Valente, tal era a honra que lhe merecia aquela companhia, até já tinha
esquecido aquela desconsideração que lhes tinham feito minutos antes.
Mas, mal a camioneta se
pôs em movimento, o senhor Valente, que ia vendo com os olhos muito abertos a
paisagem a desenrolar-se ali no grande vidro à sua frente, começou a pensar que
não havia direito… ele a ver coisas tão lindas, tantas casas, tantas árvores, tantos automóveis, e
a Santinha ali, embrulhada no papelão, e sem ver nada.
- Nã… assim é que não, q’isto até é pecado, coitadita.
Foi, então, que, com
jeitinho, pegou no canivete que trazia sempre consigo, cortou os fios que atavam o embrulho, rasgou
o papel e descobriu a cabeça da Nossa Senhora, enquanto
lhe dizia com voz doce
- Ah minha Santinha, agora sim, q’até te custava a respirar,
aí toda atabafada, Deus nos livre!
E assim fizeram a viagem. A Nossa Senhora, de pé, no banco da direita, cabeça de fora do embrulho, e o senhor Valente ao seu lado, a
explicar-lhe tudo quanto viam e a acenar às populações, que, afinal, ele não
era a Nossa Senhora mas estava ali mesmo ao lado e, portanto, era quase como se fosse, que
estas coisas da santidade, já se sabe, passam pela proximidade.
Ora, a viagem, tirando a situação do bilhete, correu muito bem e o senhor Valente, à medida que o
caminho ficava para trás, ia-se sentindo cada vez mais feliz por antecipação, a imaginar a sua entrada triunfante em Casais-de-Azeitona. O
pior foi quando chegaram a Mafra. É que
Maria Adelaide, a filha do senhor Valente, não contava com tanta santidade e veio buscá-lo na motorizada e aquilo
para levar a Nossa Senhora, estava-se mesmo a ver que ia ser o cabo dos trabalhos. Não que não A conseguissem levar,
q’até já tinham levado coisas maiores, mas ali a Nossa Senhora, não era uma coisa qualquer e, já se sabe, exigia respeito! Fizeram várias tentativas. A Nossa Senhora à frente, de pé no assento, o senhor Valente imediatamente atrás, amparando-A com os braços, ao mesmo tempo que segurava o guiador, e a Maria Adelaide em último lugar, abraçada simultaneamente ao pai e à Nossa Senhora. Mas nem chegaram a arrancar, que a Nossa Senhora dificultava muito a visibilidade e acharam melhor não arriscar. Resolveram então fazer uma variação, O Senhor Valente à frente e a Maria Adelaide atrás, com a Nossa Senhora ali bem entaladinha entre os dois. Mas a coisa ficava periclitante e, depois de avançarem uns metros, acharam que o melhor era não arriscar; Por fim, e à falta de opções, resolveram atar uma corda à Nossa Senhora, uma laçada à volta dos ombros e outra à volta das ancas e, com o excesso de corda, fizeram uma alça que puseram confiantes a tiracolo. Montaram então a motoreta e arrancaram em direcção a Casais-de-Azeitona, com a Nossa Senhora na horizontal, deitada de lado ao correr da motorizada, num voo perigosamente rasante, cabeça a espreitar do embrulho, cabelos ao vento...
(esta história é verídica... :D)
(esta história é verídica... :D)
Muito bom, mesmo.
ResponderEliminar(a descrição da viagem de motorizada é hilariante).
Reuni as tropas à minha volta para lermos em conjunto o final da bela história do Sr. Valente. Tenho-te a informar que, com um pouco de sorte, talvez à tarde consigam parar de rir e possam trabalhar...
ResponderEliminarEça, és tu?
ResponderEliminarExcelente narrativa, Palmier!! Adorei a história.
Se começares a cobrar pelas gargalhadas que provocas.. olha que era coisa para correr bem!! Bom mas bom!!
ResponderEliminarAs peripécias da devoção mariana do Sr Valente em três actos ( por enquanto, porque quantos mais melhor) predispõem qualquer manhã enublada, caramba !.
ResponderEliminarEntão a parte da santinha Evel Knievel... ainda choro...aiai... :):):)
Aposto que a mota era uma Famel... :D :D
ResponderEliminarEscreves tão deliciosamente bem, Palmier.
ResponderEliminarTão bom, Palmier...tão bom... Belo, belíssimo, post.
ResponderEliminar(é favor não se entusiasmar e não desatar a escrever cartas, sim?)
Ou pior... livros! :DDDDDDDDDDD
EliminarOlha... Ris-te?? Era mesmo isso que eu vinha cá reclamar... Para quando o livro Palmier??? (Podes sempre começar pela agenda para avaliar o poder do palmier no mercado... :DDD)
EliminarA minha agenda, a minha agenda! :DDDDDDDD
EliminarEscreve um livre Melher...
EliminarEstá a apanhar os tiques do panica.
ResponderEliminarTextos compridos demais, sem muito acrescentar.
Menos doutora, muito menos.
A malta gosta é de cenas curtas, para despachar e não de textos biblicos gigantes.
Faça lá um esforço e já agora deixe de ver a ETV e passe a ver a BenfasTv.
De acordo .Quando cheguei ao fim, uf !
EliminarChegou ao fim??
EliminarEh pah... eu não multo ninguém por não ler os meus posts, ok?
EliminarAinda bem que cheguei ao fim, pois a coisa melhor foram os cabelos ao vento da Santa, tadinha, logo ela que os usava tão tapadinhos com o véu/manto.
EliminarMuito bom e apesar de ter como protagonista a Nossa Senhora não me fez chorar ;)
ResponderEliminarComo assim?? Sinto-te diferente ana... Queres falar? :DDD
EliminarTerapia NM. Mas comovi-me
EliminarConclui-se que.
ResponderEliminarA Palmier tem uma experiência danada sobre a utilização do machimbombo. (Ah, isso é na terra dos pretos) autocarro e de longas deslocações em motorizada.
Quem diria, hem?! :)
É o meu forte! :))))))
Eliminar"na terra dos pretos"?
EliminarNa terra dos pretos! Na terra dos brancos é autocarro.
EliminarNa terra dos nem pretos nem brancos e muito pelo contrario, é ônibus
Esqueceste-te das 12 pombas brancas, em tamanho real, que a filha transportou num cesto de verga pendurado no outro braço e que para sempre lhe deixou uma dor no braço cada vez que tem de apanhar fruta.
ResponderEliminarOh raios! Como é que me fui esquecer...?!
Eliminarfizeste-me chorar
ResponderEliminarChorar...?!
EliminarChorar ? A mim fez-me rir....e muito
ResponderEliminarAcabou? Oh! :(
ResponderEliminar(deliciosa!)
Tão bom Palmier!
ResponderEliminarIsto é que é uma aventura bem contada!
Fantástico, Palmier, simplesmente fantástico.
ResponderEliminar:))))))
EliminarSe não fosse mais uma das sustentadas pelo marido não tinha tempo para estas parvoeiras de gente desocupada
EliminarCara Anónima... já lhe expliquei que nós, os ricos, não somos sustentados uns pelos outros. Nós casamo-nos uns com os outros, de forma a ficarmos ainda mais ricos (se é que isso é possível...) e termos tempo para, nos intervalos do tempo que passamos a admirar o extracto bancário, podermos dedicar-nos a a estas parvoeiras de gente desocupada... que inferno... é preciso explicar tudo...
EliminarLá está! Ser pobre deve ser chato. Até dos ricos dependem para ter o que ler...
EliminarPodiam era ser menos mal agradecidos...
Eliminar:DDDDDDDD
EliminarCuca... esta anónima tem muito receio que eu ande a delapidar a fortuna do meu marido... todos os dias vem cá deixar um comentário deste tipo! :DDDDDDDDDDDDDD
Apesar de extenso, está delicioso :)
ResponderEliminarMarco Bellini diz que está molto buono!
ResponderEliminar:))))))))
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