quinta-feira, 24 de setembro de 2015

As perigosas aventuras do pão de véspera

A situação começou a tomar forma há mais de um ano. É que aquela família praticava o terrível pecado de só gostar de pão do dia, ainda crocante e com o miolo morninho, pelo que o pão que sobrava do dia anterior era dado à empregada, já que, apesar de pecadora, a família não era estragadona e o pão, apesar de não estar tão bom como o do dia, estava bem bom para torradas. Acontece que a empregada, eternamente em dieta, não o queria, mas como também não gostava de estragar alimentos, embrulhava-o muito bem embrulhadinho num saco transparente e punha-o em cima de uma mesa, no logradouro do prédio. Era aí que a porteira, e aqui não se se lhe deveria chamar porteira se Mata-Hari, já que o seu ofício, mais do que zelar pelo prédio, passava por espiar através do óculo da sua porta as entradas e saídas de todos os condóminos, informação que, estou convencida até hoje, apontaria num caderninho de capa preta para mais tarde analisar e daí extrair as mais intrincadas conclusões, mas como ia dizendo, a porteira, num dos intervalos das suas espiadelas pelo óculo, lá arranjava um minutinho em que o elevador serenava e as portas dos apartamentos se aquietavam para, num pulinho, ir até ao logradouro resgatar o seu meio pão de véspera.
E tudo corria bem naquele prédio onde reinava a paz e a felicidade.
Acontece que um dia em que a porteira já sonhava com as suas torradinhas fumegantes, o pão desapareceu. E no outro voltou a desaparecer, e a situação voltou a ocorrer uma terceira e uma quarta vez e foi assim que a porteira, dividida entre as suas obrigações com o óculo da porta da frente, começou a espiar também as traseiras do prédio. Imagino-a esbaforida ao mínimo ruído, correndo dentro de sua casa, da porta da frente para as traseiras, das traseiras para a porta da frente, determinada que estava a deslindar o estranho caso do desaparecimento do pão de véspera. Claro está que, como excelente porteira que era, um exemplar dos mais clássicos, com uns grandes óculos de hastes doiradas que tudo viam, rapidamente deslindou o terrível enigma que assolava aquele prédio. Descoberta que rapidamente confidenciou secreta e separadamente a todos os condóminos, começando a frase com “isto é só a gente aqui a falar, mas…” e desembestava por ali fora, descrevendo, indignada, a nefasta situação. E, de acordo com a sua versão, parece que o meio pão de véspera estava a ser desviado da sua rota pela senhora do quinto direito, que abandonava por momentos a sua casa atapetada com os mais belos Arraiolos, os seus móveis cobertos das mais ricas pratarias e as paredes obscurecidas com óleos dos pintores mais afamados, descendo, pé ante pé, lá de cima, pelas escadas de serviço, para se apoderar do meio pão que em tempos pertencera à tal família, que o deu à empregada, que por sua vez o doou à porteira para, finalmente, ir parar às garras da senhora do quinto direito. Claro que aquela era a tempestade perfeita, gerou-se logo ali uma guerra sanguinária pela posse do meio pão de véspera, estavam as duas à coca, cada uma na sua janela, disfarçadas por umas plantas frondosas estrategicamente colocadas nos parapeitos, à espera do momento em que a empregada da tal família aparecia com o meio pão, para rapidamente se movimentarem como peças experientes num tabuleiro de xadrez, por forma a garantirem a primazia na chegada ao objectivo. E foram travadas várias batalhas, que a porteira, dada a proximidade da sua casa com o logradouro, se encontrava a ganhar numa proporção de dez para oito, e disso mesmo dava nota secreta aos vários condóminos. Mas isto já se sabe, ganhar uma batalha não significa ganhar a guerra e foi então que a senhora do quinto direito, não desarmando e depois de engendrar uma sofisticada estratégia, resolveu ir pela escada principal, bater directamente à porta da tal família, ordenando à empregada que, a partir daquele dia, havia de ir deixar o pão que lhe sobrava na mercearia logo ali defronte, onde, aliás, ele havia sido comprado na véspera, que ela depois, quando lhe desse jeito, havia de ir lá buscá-lo.

E foi assim que aquela família, prevendo as consequências desastrosas da feroz guerrilha que se instalou no tal prédio, se viu condenada a devorar o pão na sua totalidade, até à última côdea mais dura.



22 comentários:

  1. Fica apenas por revelar a pergunta que fica na mente de todos os leitores: era pão de sementes?

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    1. Ahahahahahahhahahhahhahhahahhahhaahhahahhahhahahahahah
      Ainda se fosse... mas não, é um simples pão de mistura :D

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  2. O meu sogro só gosta de torradas em pão de véspera. Para o efeito compram-se sempre dois pães. Um que se come no dia e outro que se guarda com a indicação específica que não é para se comer (nem que tenha de se ir comprar mais), por que é para torradas. Alguém havia de dar essa ideia à senhora do 5.o andar.

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    1. Ai que susto! De repente pensei que também quisesses entrar na guerra do pão de véspera! E isso, mais do que uma guerra, já seria um conflito alargado quase à escala mundial! :DDDDDDDDDD

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    2. Os Americanos tiveram a revolta do chá, nós teremos a revolta do pão duro.

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  3. Espero que tivesse o cuidado de enviar o pão com o suplemento diário de ferro. É que suponho que as duas senhoras não caminhem para novas e com tanta doença de nervos devem ter a saúde afectada.

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    1. Claro! Juntamente com o pão ia sempre um esfregão de arame! :DDDDDDDDDDDDDDD

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    2. Ahahahahahahahhahahahahahahahahaahahahha!!!!!!

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  4. Lembrei-me de que há uns anos atrás a minha mãe tinha o hábito de pedir à empregada para dar os restos das hortaliças e legumes crus, que já não tinham aproveitamento (achava a minha mãe ) à porta de uma senhora que tinha muitas galinhas , coelhos etc. para alimentar a bicharada.
    Um dia estava a minha mãe calmamente numa loja, entra a dita. sra. dizendo alto e bom som que havia pessoas que não sabiam aproveitar os legumes, que parecia impossível as coisas que deitavam fora, que ainda estava tudo muito bom, etc. Acabaram-se as doações.

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  5. Pipocante Irrelevante Delirante24 de setembro de 2015 às 13:01

    So como pão do dia cozido en forno de lenha por duendes especializados.

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    1. :DDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDD
      É o mínimo! Presumo, então, que não te queres envolver na guerra pela posse do meio pão de véspera?

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  6. Esse meio pão de véspera com um esfregão de arame barrado por "aquela coisa vegetal da qual não me lembro do nome" parece-me muito interessante. Posso candidatar-me?

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    1. Oh, não! Estou em crer que isto ainda vai dar azo à terceira guerra mundial! Já imagino os historiadores, daqui a um século, a estudarem todas as movimentações do pão de véspera, a matéria a ser vertida nos livros escolares... :DDDDDDDDDD

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  7. A minha filha é muito fina.
    Só come torradas do pão do próprio dia, embora já todos nós lhe tenhamos dito que do de véspera é que é melhor, ams então, com 16 anos, acha sempre que ela é que sabe.
    Pãozinho de véspera é algo que não habita lá em casa. Aliás, eu até evito comprar o dito. Faz muita migalha e tal... ihihih

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  8. Ora um mistério à altura para celebrar o 125º aniversário de Agatha Christie! Foi-me impossível durante a leitura não imaginar também Miss Marple de olho no local do crime. :P

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  9. Ena! Pãozinho duro de mistura, da família de baixo, dois dentes de alho da família de cima, cabeças de camarão da família do lado e um punhado daquelas ervas que não vão à mesa do rei Do quintal da porteira, e temos uma bela açorda !!!!!

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  10. https://www.youtube.com/watch?v=GDE4rsLVB9A

    Um pão aventureiro, já se viu.

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  11. Eu então, se puder escolher, como sempre o pão duro. Também não gosto de pão quente, acabado de fazer. Esquisitices... :)

    Mas bom, bom, é este:

    http://doghumor.net/bread-pit/#

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  12. Eu ca so posso comprar pao de semana em semana (e tem q ser de forma, porque pagar 2€ por 4 carcaças nao é para a minha carteira). Resulta q o homem passou a fazer pao em casa (e bem bom tenho que dizer) e o cheiro era tal que os vizinhos passaram a bater à porta para saber o segredo do cheiro a pao recem feito pelo predio todo, chegou ao ponto em que quando o homem vai fazer pao manda mensagem aos vizinhos de vespera para saber se eles vao querer ou nao, e assim so se liga o forno uma vez (e eles pagam trazendo-me cafe ou chá a granel, ou até trazendo os paquetes de leite que gastamos ou coisas mais pesadas que nós por nao termos carro nos custam mais a trazer)

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