Eram duas irmãs, diferentes em tudo, uma histriónica, exagerada e manipuladora, a tia Lili, e a outra, a minha avó, uma pessoa discreta, contida e recatada, saída directamente do antigamente. Sempre se deram muito mal, mas houve uma altura, já para o fim da vida, em que a coisa piorou substancialmente. Quando a tia Lili ia passar uma temporada a casa da minha avó, as coisas eram como eram, ou a sopa tinha muito sal e estava uma pilha, ou então estava uma lama, que, quando não tinha sal, não passava de uma lama, deixando a cozinheira desesperada, a vociferar e a bater com as panelas, lá dentro, na cozinha; ou estava muito calor e passava o dia de leque na mão a abanicar-se, ou estava um frio glaciar e a casa era um horror, praticamente um igloo, ou então a almofada não prestava e os lençóis eram ásperos, razão pela qual levava, amiúde, resmas de lençóis floridos de flanela, que oferecia a quem os quisesse e, sobretudo, a quem não os queria.
Mas o pior, o pior não era o bulício que causava em casa da minha avó, o pior era quando chegava a vez da minha avó passar uns dias em sua casa, e aí, a tia Lili, ciente de que detinha as rédeas do poder, fazia o possível e o impossível para transformar esses dias numa tortura. E tinha tudo preparado, o guião e o cenário. A casa estava pronta a acolher a sua querida irmã, com os quartos, simétricos, meticulosamente preparados, o seu próprio quarto, com uma cama enorme e confortável, colcha e cortinas leves e coloridas e quadros com paisagens verdejantes, já o da minha avó tinha uma cama minúscula, perfeita para um gnomo, colchão duríssimo, cortinas pesadas e escuras com um padrão tenebroso e, pelas paredes, quadros religiosos com santos e crucificações escuras e assustadoras. As casas-de-banho, também elas simétricas, comungavam do ambiente dos quartos: a da minha tia, luminosa, com azulejos cor-de-rosa, e a da minha avó uma catacumba de azulejos negros.
A manhã, nunca soube como a passavam, sei que saíam para almoçar, porque a tia Lili, tirando aquela vez que cozeu uma dezena de maçarocas de milho para eu comer, e que eu comi - foi aliás a primeira e última vez, porque depois daquele exagero nunca mais na vida consegui comer milho - não queria cozinhados em casa, que só o cheiro lhe causava agonia. Mas, como ia dizendo, saíam para a almoçar, sendo que a minha avó ia para esses almoços verdadeiramente contrariada, que não ficava nada bem a duas senhoras irem assim, sozinhas, pela rua fora, para um restaurante. Mas isso era um detalhe de somenos importância, já que a minha tia levava muito a sério a sua missão: a de chocar a sua irmã. Assim, e mal saíam a porta de casa, a tia Lili desatava a falar com todas as pessoas com que se cruzava, numa ânsia de se mostrar extremamente popular com os seus oitenta e cinco anos; falava com quem conhecia e com quem nunca tinha visto antes e, no restaurante, andava de mesa em mesa, rodopiante, esfuziante, com os seus óculos em forma de borboleta e lentes fundo de garrafa e a sua peruca enfiada até às sobrancelhas, peruca que era escolhida diariamente e em função da toillete. Assim como nós escolhemos as carteiras, a tia Lili escolhia a peruca. Tinha, aliás, uma divisão da casa destinada à exposição das perucas, aquilo a que nós, os dos blogues, chamaríamos, hoje em dia, o closet das perucas. A minha avó nem levantava os olhos do prato, as pulseiras das libras a chocalhar com o nervoso, horrorizada com aquelas confianças, "oh Lili, oh Lili, senta-te lá que o almoço está a arrefecer...", ah... mas a minha tia sabia bem disso, e por saber tão bem é que fazia pior! O pior que conseguia! Depois do almoço iam para casa, não sem antes falar com a senhora da farmácia, da ourivesaria e do supermercado, era importante que a minha avó percebesse como ela era aclamada por aquelas bandas. Uma verdadeira estrela. Uma vez chegadas, a tarde processava-se com requintes de sadismo, ali ficavam as duas na penumbra da sala, as luzes apagadas e a televisão, ou melhor, o televisor desligado, não se podia ligar nada porque a minha tia padecia dos olhos e não os podia gastar. Era mesmo assim que dizia: "não posso gastar os olhos!". Mas, em poupando os olhos da televisão e das luzes, podia aproveitar para os fixar noutra coisa qualquer... na roupa da minha avó, na pele, ai... que horror! Tens de usar um creme anti-rugas, como eu! E mostrava a sua pele à irmã, para que ela pudesse apreciar como estava bela e hidratada... e essas roupas?! Tens de parar de te vestir com essas cores escuras... ficam-te horrivelmente! Devias usar umas coisas mais alegres, assim como eu! E arrastava-a até aos seus armários repletos de fatiotas chiquíssimas de gosto duvidoso, as fatiotas produzidas pela Fernanda, a modista sem escrúpulos que se fazia pagar a peso de ouro. Fatiotas encarnadas, cor-de-rosa, azul turquesa e amarelo canário, flores, ramagens, riscas, brilhos e bolas, e a minha avó, que nunca ousou mais que um saia-casaco de cores sóbrias com um colar de pérolas rente ao pescoço, tremia só de olhar, "Então tu achas que eu vou vestir uma coisa dessas?", e a tia Lili abespinhava-se, o que queres dizer com isso "uma coisa dessas"? Isto é o que se usa em Paris! Em Paris! Para além disso, estás muito pálida! Tens de pôr um rouge! É por essas e por outras que eu vou fazer uma plástica! Para não ficar como tu! Vais fazer o quê? - dizia a minha avó horrorizada - Uma plástica?! Já marquei e tudo?! Tu não estás boa da cabeça! Então com essa idade - a tia Lili era mais velha, está bom de ver - vais fazer uma plástica?! O que é que tem a minha idade?! Agora estas operações fazem-se em todas as idades! E também vou marcar para ti, que ainda precisas mais do que eu! E a minha avó abanava a cabeça, a respiração entrecortada, "parece impossível, parece impossível" repetia incessantemente.
Assim se passavam dois, três, cinco dias, a tortura só acabava quando a íamos buscar, quando a minha avó, com a sensação de dever cumprido e com a cabeça esvaída, se sentava no carro, punha o cinto, agarrava com a mão direita aquela pega superior do tejadilho, respirava fundo e atirava pela janela, como uma estalada na cara, um aliviado:
Mas o pior, o pior não era o bulício que causava em casa da minha avó, o pior era quando chegava a vez da minha avó passar uns dias em sua casa, e aí, a tia Lili, ciente de que detinha as rédeas do poder, fazia o possível e o impossível para transformar esses dias numa tortura. E tinha tudo preparado, o guião e o cenário. A casa estava pronta a acolher a sua querida irmã, com os quartos, simétricos, meticulosamente preparados, o seu próprio quarto, com uma cama enorme e confortável, colcha e cortinas leves e coloridas e quadros com paisagens verdejantes, já o da minha avó tinha uma cama minúscula, perfeita para um gnomo, colchão duríssimo, cortinas pesadas e escuras com um padrão tenebroso e, pelas paredes, quadros religiosos com santos e crucificações escuras e assustadoras. As casas-de-banho, também elas simétricas, comungavam do ambiente dos quartos: a da minha tia, luminosa, com azulejos cor-de-rosa, e a da minha avó uma catacumba de azulejos negros.
A manhã, nunca soube como a passavam, sei que saíam para almoçar, porque a tia Lili, tirando aquela vez que cozeu uma dezena de maçarocas de milho para eu comer, e que eu comi - foi aliás a primeira e última vez, porque depois daquele exagero nunca mais na vida consegui comer milho - não queria cozinhados em casa, que só o cheiro lhe causava agonia. Mas, como ia dizendo, saíam para a almoçar, sendo que a minha avó ia para esses almoços verdadeiramente contrariada, que não ficava nada bem a duas senhoras irem assim, sozinhas, pela rua fora, para um restaurante. Mas isso era um detalhe de somenos importância, já que a minha tia levava muito a sério a sua missão: a de chocar a sua irmã. Assim, e mal saíam a porta de casa, a tia Lili desatava a falar com todas as pessoas com que se cruzava, numa ânsia de se mostrar extremamente popular com os seus oitenta e cinco anos; falava com quem conhecia e com quem nunca tinha visto antes e, no restaurante, andava de mesa em mesa, rodopiante, esfuziante, com os seus óculos em forma de borboleta e lentes fundo de garrafa e a sua peruca enfiada até às sobrancelhas, peruca que era escolhida diariamente e em função da toillete. Assim como nós escolhemos as carteiras, a tia Lili escolhia a peruca. Tinha, aliás, uma divisão da casa destinada à exposição das perucas, aquilo a que nós, os dos blogues, chamaríamos, hoje em dia, o closet das perucas. A minha avó nem levantava os olhos do prato, as pulseiras das libras a chocalhar com o nervoso, horrorizada com aquelas confianças, "oh Lili, oh Lili, senta-te lá que o almoço está a arrefecer...", ah... mas a minha tia sabia bem disso, e por saber tão bem é que fazia pior! O pior que conseguia! Depois do almoço iam para casa, não sem antes falar com a senhora da farmácia, da ourivesaria e do supermercado, era importante que a minha avó percebesse como ela era aclamada por aquelas bandas. Uma verdadeira estrela. Uma vez chegadas, a tarde processava-se com requintes de sadismo, ali ficavam as duas na penumbra da sala, as luzes apagadas e a televisão, ou melhor, o televisor desligado, não se podia ligar nada porque a minha tia padecia dos olhos e não os podia gastar. Era mesmo assim que dizia: "não posso gastar os olhos!". Mas, em poupando os olhos da televisão e das luzes, podia aproveitar para os fixar noutra coisa qualquer... na roupa da minha avó, na pele, ai... que horror! Tens de usar um creme anti-rugas, como eu! E mostrava a sua pele à irmã, para que ela pudesse apreciar como estava bela e hidratada... e essas roupas?! Tens de parar de te vestir com essas cores escuras... ficam-te horrivelmente! Devias usar umas coisas mais alegres, assim como eu! E arrastava-a até aos seus armários repletos de fatiotas chiquíssimas de gosto duvidoso, as fatiotas produzidas pela Fernanda, a modista sem escrúpulos que se fazia pagar a peso de ouro. Fatiotas encarnadas, cor-de-rosa, azul turquesa e amarelo canário, flores, ramagens, riscas, brilhos e bolas, e a minha avó, que nunca ousou mais que um saia-casaco de cores sóbrias com um colar de pérolas rente ao pescoço, tremia só de olhar, "Então tu achas que eu vou vestir uma coisa dessas?", e a tia Lili abespinhava-se, o que queres dizer com isso "uma coisa dessas"? Isto é o que se usa em Paris! Em Paris! Para além disso, estás muito pálida! Tens de pôr um rouge! É por essas e por outras que eu vou fazer uma plástica! Para não ficar como tu! Vais fazer o quê? - dizia a minha avó horrorizada - Uma plástica?! Já marquei e tudo?! Tu não estás boa da cabeça! Então com essa idade - a tia Lili era mais velha, está bom de ver - vais fazer uma plástica?! O que é que tem a minha idade?! Agora estas operações fazem-se em todas as idades! E também vou marcar para ti, que ainda precisas mais do que eu! E a minha avó abanava a cabeça, a respiração entrecortada, "parece impossível, parece impossível" repetia incessantemente.
Assim se passavam dois, três, cinco dias, a tortura só acabava quando a íamos buscar, quando a minha avó, com a sensação de dever cumprido e com a cabeça esvaída, se sentava no carro, punha o cinto, agarrava com a mão direita aquela pega superior do tejadilho, respirava fundo e atirava pela janela, como uma estalada na cara, um aliviado:
- Fica com Deus!
(os quadros da decoração má estão agora aqui, ao meu lado... a assombrar-me :)
Eu vou já já ler isto tudo, mas antes uma questão:
ResponderEliminarQuantos dias são "os dias contados"?
Hã?
Eliminar(até fui ler tudo outra vez... a pensar onde é que tinha escrito isso de "dias contados"...)
E não viste?
EliminarNão..?!
EliminarHeader...
EliminarAHhahahhahahahhahahhahahahhahahahahahahahahhahahhahahahahahahahhahahahahhahahahha
EliminarMá! :DDDDDDDDDDD
Ó Lulu, és uma cortes, sabias?
EliminarTinha aqui conversa para, pelo menos, uma semana, pá!
Ainda tentavas maquilhar a Palmy...
EliminarNunca mais aqui ponho os pés! Não estou habituada a não obter resposta dos donos dos blogues onde faço o favor de compor a caixa de comentários. Que falta de consideração, han?
Eliminar:DDDDDDDDDDD mas, mas... tu não estavas a falar com a Lulu?!
EliminarE é a Lulu que me vai dizer quantos são os dias contados???
EliminarOlha... é até os assassinos de blogs virem cá dar cabo disto! Sei tanto quanto tu! :DDDDDDDDDDD
EliminarPalmier, mais uma vez peço: escreve um livro.
ResponderEliminarMuito bom :))))))
ResponderEliminar(adoro estas estórias de família)
:)))))
EliminarIrmãs, essas desconhecidas... Faz lembrar aquele ditado que fala dos cinco dedos da mesma mão. Gostei muito de ler. :)
ResponderEliminar:)
EliminarVai que herdavas os closets (o das perucas ou o das roupas arco-iris)?
ResponderEliminarTendo em conta os rumores que circulam sobre o meu cabelo, se calhar devia ter ficado com as perucas! :DDDDDDDDDDDD
EliminarÉ muito bom ter alguém na família que ponha tão bem por palavras, a vivência de uma vida. Parabéns.
ResponderEliminarCompreendo! Compreendo perfeitamente! Nem imagina como!
ResponderEliminarAs palavras são proferidas calmamente, sem raiva aparente mas imbuídas de uma não disfarçada malevolência que só um tolo decidiria ignorar.
Ferem de uma maneira quase amistosa. Com um sorriso de condescendente complacência, mas com os olhos a fitarem intensamente o seu interlocutor a comunicarem que falam muito a sério, que o destruirá sem hesitar num segundo.
Acresce-se uma astúcia natural para a maldade acompanhada de uma personalidade psicótica, e tem-se a haver com uma filha da mãe deveras perigosa em cima.
Mas ela impressa na retina, indelével.
Sentidos entorpecidos.
Sensação de irrealidade
Como um sortilégio.
Que impele inelutavelmente para o abismo
Adeus querida. Que se f*d# o sangue. Que Deus te guarde e a mim não desampare.
Se compreendo!
Corvo.
:))))
EliminarQue duas! Eu e o meu irmão também somos substancialmente diferentes.
ResponderEliminarJá a minha mãe dá-se lindamente com todos os irmãos. Dá gosto de ver, a sério. Um carinho e companheirismo desmedidos.
Queremos mais histórias, sim?
:)))
EliminarJá uma vez lhe disse e volto a repetir: Isto sabe-me a Agustina. :)
ResponderEliminarSó com muita generosidade! :D
EliminarMas obrigada :)
Sem generosidade e com muita sinceridade, incomparavelmente melhor que Saramago.
EliminarAssim escrevesse ele metade e tinha aqui um leitor vidrado.
Corvo.
Ui... aí vamos mesmo ter de discordar :))))) amanhã falaremos sobre Saramago :)
Eliminar(mas obrigada pela gentileza :)
Tia Lili nunca casou, pois não? Divertiu-se à le grand et le français!
ResponderEliminarGosto tanto da família da Palmier!
:DDDDDDDDD
EliminarAchei deliciosa a forma como a vóvó Palmier aguenta estoicamente as idas e as vindas... acho que não ia ser assim... não, de certeza que não ia ser assim... ia ser duro para a tia Lili ter uma imã como eu ai se ia :):) mas achei lindo lindo!
ResponderEliminar:D
EliminarHistória maravilhosa! De ficar com sede de mais! Todos temos uma "tia Lili". Eu cá adoro partilhar da minha cultura geral durante o chá, em especial curiosidades sobre outras culturas, e do que acontece às pessoas de idade por lá. Tipo, "tia, sabia que era ritual os idosos das tribos mais a norte embarcarem sozinhos num pedaço de gelo flutuante, quando começam a ser um peso?!" ;)
ResponderEliminar:DDDDDDD
EliminarGrande história!
ResponderEliminarLá grande é ela! :)
Eliminarpequeno comentário.
EliminarTenho uma boa história no meu blog hoje só para que conste, se bem que esta, de facto, está muito bem redigida!
EliminarGosto tanto destas histórias, Palmier. E tu conta-las com alma, uma pessoa consegue sentir-se lá, a observar o desenrolar dos acontecimentos.
ResponderEliminarParabéns! Está excelente.
Merci :)
EliminarIsto assim de repente podia bem ter saído de um romance de Eça, era só detalhar mais ali as decorações dos quartos e das casas-de-banho e tínhamos romance! ;)
ResponderEliminarEhhh... que exagero! :)))))
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