quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Outras passagens de ano

Hoje estive num armazém onde a casa da minha avó está empacotada, empacotada em caixotes de cartão com legendas, como se fosse preciso dizerem-nos que aquilo são os copos do armário do canto direito da copa, aquele que tinha um cheiro adocicado a água de Monchique, o candeeiro do cantinho da televisão, já com o abat-jour descaído para um dos lados, leques velhos e partidos dentro de caixas e caixinhas, um chapéu de chuva minúsculo que nunca tinha visto, dossiers com contas de água e electricidade com mais de quinze anos, guardanapos marcados com o nosso nome e as respectivas argolas, a capa com as fitas amarelas do curso do do meu avô no meio de álbuns meio vazios, álbuns que por alguma razão foram começados e nunca foram acabados, um vestido de veludo preto dentro de uma arca, junto da respectiva carteira com brilhos, fotografias minhas, do meu filho recém nascido, que a minha avó ainda conheceu, fotografias do meu pai e do meu tio com várias idades, dos meus avós, a mítica fotografia da tia Lili, a mais bela, a que se encontrava exposta em todas as casas e que tanto procurei no outro dia quando dela aqui falei, todas ali emolduradas e guardadas por entre loiça desirmanada dentro de um armário fechado, num sítio que não nos diz nada e no meio de coisas que fazem parte do nosso passado.

As cadeiras da sala de jantar, aquelas onde nos sentávamos para o chá de ano novo, logo depois do meu avô abrir a garrafa de champanhe e da minha avó dizer dez vezes de seguida com os olhos postos na rolha, "cuidado com o vidro da televisão!", as cadeiras de onde eu tantas vezes saltei ao bater das doze badaladas para garantir que crescia, também lá estavam, debaixo de plásticos cheios de pó. Ainda pensei em subir a uma, mas ainda não era meia-noite.





7 comentários:

  1. Bonito de ler, muito mesmo. Quando chagar a meia noite a cadeira vai seguramente pensar em si e sorrir á lembrança da menina que cresceu.
    Beijinho, Palmier, Bom Ano.

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  2. Escreves muito bem, Palmier! Bom ano novo

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  3. A Palmier já pensou escrever um livro? Ou assinar uma coluna algures? Pense nisso!

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