domingo, 28 de julho de 2013

A viagem

Daqui a uns dias volto a fazer "a viagem", a viagem que já fiz tantas vezes que lhes perdi a conta, o destino é sempre o mesmo, o traçado já mudou vezes sem conta. A primeira vez que fiz a viagem, tinha meia dúzia de dias, parece que a fiz numa alcofa, que ainda não havia cadeirinhas, dessa viagem em concreto não tenho recordação, mas tenho de muitas outras, viagens que duravam uma eternidade, com a auto-estrada a acabar logo ali em Setúbal. Ainda falta muito? Perguntava logo a seguir à ponte sobre o Tejo. Lembro-me de a fazer com o meu pai, quando ainda me atrevia a andar de carro com o meu pai, brrrrum, brrrrum, primeiro num VW carocha amarelo e mais tarde num Brasília branco, a acelerar nas rectas, reduzir com a caixa para as curvas, ultrapassar, ultrapassar, acelerar, carros, camiões, reduzir, travar, vomitar já quase a chegar, ali no Espinhaço de Cão. A viagem com Maman, num VW carocha cor-de-laranja, num branco, num azul cueca, aquela vez em que se partiu o vidro da frente e em que tivemos de ir muito devagarinho com um vento ciclónico a entrar-nos pelo carro a dentro, e outra vez, com a nossa cadela, uma Doberman, chamada, muito apropriadamente, Fofa, acondicionada na chapeleira, lembro-me de uma viagem em que parámos para jantar algures no Alentejo, quarenta graus e a Fofa saiu disparada para um campo de erva alta amarela, eu fui a correr atrás dela, um primo meu atrás de mim, a Fofa saltava tão, mas tão alto, que aparecia por cima da erva que nos chegava praticamente à cabeça, como um coelho gigante ou uma bola saltitona, e eu ri-me tanto, mas tanto, que fiz xi-xi pelas pernas abaixo, dizendo depois que tinha caído numa poça de água... uma desculpa muitíssimo credível... uma poça, no Alentejo, no pico do Verão, com quarenta graus à sombra... A viagem com os meus avós, num Volvo bege, a viagem mais demorada de todas, demorada para partir, demorada a fazer, interminável, a minha avó agarrada àquela pega por cima da janela, os penduricalhos das pulseiras a tilintar, a dizer "oh Manuel, oh Manuel", e o meu avô a responder "e não chove, nem nada", e o carro cheio de tralha, a minha tia Lili sentada ao meu lado, a entupir-me de pastilhas elásticas Gorila, e a minha avó a dizer "oh Manuel, oh Manuel" e o meu avô a responder com aquilo da chuva, e a minha tia Lili a mostrar-me o saco de pastilhas e a dizer "oh Palmier... um Gorila dentro do carro?", e eu a adormecer para acordar estremunhada quando estávamos quase a chegar. Com uns dez ou onze anos, as viagens de camioneta, cinco horas, com desconhecidos sentados ao meu lado, a parar na Mimosa, a ir à casa-de-banho a correr com medo de ficar esquecida, cinco horas que pareciam dez, afinal eu ainda era pequena, por que raio me enfiavam na camioneta? Parava em mil terras, pessoas que saiam antes de mim, e eu a espreitar pela janela para ver se ninguém me levava a mala, a minha mala que durou anos sem fim, rectangular, cor-de-vinho, com umas fivelas douradas, o alívio de chegar finalmente ao destino e ter as minhas pessoas à espera. Depois as viagens em que eu ia ao volante, ah... que crescida! Que moderna! Aqui vou eu, ninguém me agarra, olhem bem, sou mesmo eu, janela aberta, musica alta, risota, amigas, amigos; a primeira vigem com um filho, aflição, Maman apresenta-se para me acompanhar, acontece que se apresenta com mais coisas do que aquelas que conseguíamos encaixar no porta-bagagem já de si extremamente cheio, dessa vez, entre a banheira portátil do bebé e a mala dos sapatos de Maman, optei pela banheira, Maman fez o Verão todo com os mesmo sapatos; mas até lá chegarmos, havia que verificar a cadeirinha, a aflição crescente, será que ele está a respirar, será que o sol lhe está a bater na cara, parar em todas as áreas de serviço, tirá-lo da cadeirinha, dar biberão, trocar a fralda, voltar a sentá-lo, verificar cinto, verificar cadeirinha, seguir viagem por mais trinta quilómetros, repetir a operação; depois aquela viagem  com um filho na barriga e outro no banco de trás, uma luz encarnada a acender no tablier, páro numa estação de serviço, ligo para a assistência, Maman a insistir que aquilo não devia ser nada, "vamos continuar" dizia, contrariada acedi, o carro parou cinco quilómetros à frente, no meio do nada, voltámos de táxi; e agora com dois filhos, que voltam a dar início ao mesmo ciclo e perguntam logo à saída da ponte sobre o Tejo se ainda falta muito.

14 comentários:

  1. Tão bom!!!! :) Lembro-me das filas intermináveis para passar a ponte levadiça de Alcácer com a sensação de que depois daquilo já podia perguntar outra vez "falta muito?"
    Boa "viagem"

    ResponderEliminar
  2. Como é possível não te lembrares da viagem revolucionária????
    Aquela que demoramos praticamente um dia e uma noite, com os soldados da revolução a revistarem os carros à procura das armas que tinham desaparecido não sei de que quartel!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Dessa, não me lembro de todo! Devia ser muito pequena...

      Eliminar
    2. Então e aquela em que o carro começou a deslizar muito devagarinho em direcção ao precipício naquela curva de Odeceixe?

      Eliminar
  3. Pois é, as tuas memórias começam nos VW , não te lembras dos Mini.
    Não te lembras daquela vez, ainda com a Didá em que o carro começou a atingir temperaturas elevadíssimas.
    Como sabes a tua mãe nunca se rende a caprichos dos carros; paramos em todas as bombas e como os homens da gasolina se recusassem a obedecer às minhas ordens só lhes pedia que abrissem e fechassem o capot do carro, enquanto a Didá supervisionada por mim, regava o motor até arrefecer.
    Foi uma viagem sem problemas. Soube depois que a correi da ventoinha se tinha estragado.
    Para que é que é precisa uma Correia de ventoinha quando se pode dar banho ao motor. Disseram-me que não era possível não ter gripado o motor. Deve ter sido porque era Verão e as gripes são coisas de Inverno.

    ResponderEliminar
  4. Aí, lembro-me de viagens de 11h, em que a fila começava antes das portagens novas, i.é. Setúbal. Viagens de 5h eram umas boas viagens, hoje em dia nem parece verdadeiramente uma viagem.

    ResponderEliminar
  5. (só ponho um sorriso para saberes que estive aqui; escrever qualquer outra coisa seria estragar)
    :)

    ResponderEliminar
  6. Dantes a viagem era longa e muito quente, bons velhos tempos... acho que nesse tempo as pessoas eram mais felizes :)

    ResponderEliminar
  7. Cheguei a fazer essa viagem com a minha tia e levávamos no carro uma gaiola com periquitos (também mereciam ir de férias).

    ResponderEliminar
  8. Não tenho palavras para comentar este post. És genial! :)

    ResponderEliminar
  9. Parabéns pelo texto!! Genial! Transportou-me para as minhas viagens a cinco!! Casal,dois filhos,e um canário!! O que os meus filhos embirravam com o dito!! A gaiola ia entre os dois numa caixa arranjada para o efeito,nas áreas de serviço era uma risota!! A minha filha cheia de vergonha,o meu filho adorava!!(ele só não gostava de ir ao lado dele no banco!!)Bons tempos! Já pensou escrever um livro? Tem jeito!

    ResponderEliminar