sábado, 22 de novembro de 2014

O fim de um tempo

Acho que daqui a uns bons anos, quando os meninos estudarem na escola o início do século XXI, hão-de falar sobre o fim da democracia tal como nós a conhecemos, a democracia assente em partidos políticos, partidos que, a pouco e pouco, foram deitando borda fora todos os valores que serviam de pilar à nossa sociedade e os substituiram por um único: o valor do dinheiro. E o dinheiro não como recompensa pelo esforço e pelo trabalho, o dinheiro fácil, a rodos, o dinheiro "já", o dinheiro "na hora", o dinheiro que era de todos e agora é meu, o dinheiro sem escrúpulos, o que nunca é suficiente, o da ganância, da avidez, do vale tudo, o único capaz de realizar e de trazer felicidade, o dinheiro simplex. E não estamos a falar da felicidade daqueles a quem o dinheiro faz falta, dos que têm de o esticar até ao fim do mês, daqueles a quem um pouco mais havia efectivamente de trazer conforto e bem estar, estamos a falar dos que o têm, mas para quem nunca é suficiente, nunca chega, dos que querem sempre mais, independentemente das consequências, o dinheiro pelo qual vale a pena arriscar tudo, o bom nome, a honra, a honestidade e a liberdade, até porque, tirando a liberdade, os outros valores são hoje em dia um anacronismo.
E muito gostaria eu de estar nessas aulas, para saber o que se segue. É que quando um sonho - e era bem bonito o nosso sonho - acaba em pesadelo, deixa um vazio perfeito para a entrada em cena das extremas, esquerda e direita, dos populismos, dos Marinhos Pintos num estilo mais tosco e, num estilo um bocadinho mais polido, (fuzilem-me, ok!) dos Gomes Ferreiras deste mundo (ainda havemos de o ver entrar em ombros no palácio de S. Bento), dos justiceiros, dos que nos encantam com lindas palavras mas que não nos vão resolver nada, porque a solução não passa pelas pessoas mas pelos modelos, e o nosso modelo apodreceu na árvore. E até encontrarmos um modelo que nos satisfaça, parece-me bem que vamos penar um bocadinho. É que viver o fim de um tempo deve ser mesmo assim, é saber que o que temos já não nos serve, mas não conseguir vislumbrar ainda o que está ali à frente, ao virar da esquina.



17 comentários:

  1. Cada dia mais chocada com todos estes acontecimento, é uma atrás da outra, este país está a entrar em colapso. Gostaria de ver como vão um dia contar aos miúdos esta parte da história... A ver como isto vai acabar, só espero que a justiça passe finalmente a funcionar, será?

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  2. Tenho 25 anos e desde os meus 15 anos, quando comecei a perceber/interessar-me pela politica, que sinto o que a Palmier acabou de escrever. Eles não me servem, nunca me serviram e sinceramente não me espanta isto, ou melhor não choca. Espantada estou por ele ter sido preso. Mas ainda não foi condenado.

    Na realidade somos a chacota da Europa. Todos tiveram politicos corruptos ou banqueiros corruptos presos, como exemplo, em vários casos nos quais Portugal esteve envolvido. Até ontem éramos os únicos que não tínhamos nenhum indicio que houvesse justiça em Portugal. Hoje estou um pouco mais crente. Agora vamos a ver se realmente se prova a inocência/culpa ou se é mais um que se safa por incongruências/pormenores do processo.

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  3. No fim de um tempo, há duas hipóteses de viver o que vem depois; duas personagens maravilhosamente vividas em dois filmes que,sobre o tema, são para mim os melhores. E tudo o vento levou (Scarlet e Ashley) e O leopardo ( Alain Delon e Burt Lencaster) . Ou se acompanha ou se olha de cima.

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  4. Portugal tem problemas endémicos; este é um deles; não saber viver com valores democráticos e perceber o verdadeiro significado da chamada filosofia politica.

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  5. A Kodak tardou a perceber o impacto da fotografia digital -- e isso foi-lhe fatal. Os jornais tardaram a perceber o impacto da web -- e isso está a ser-lhes fatal.
    Os políticos e os banqueiros, até mesmo os que os se julgam melhor informados, estão a tardar a perceber o impacto de todos os meios de tracking actualmente disponíveis -- e isso, by jove -- ser-lhes-á fatal. Até que um novo ponto de equilíbrio seja encontrado.

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    1. Pois eu tenho cá para mim que tem mais a ver com arrogância e megalomania que com desconhecimento de tracking. Do alto do seu narcisismo, eles acham-se uns Deus, intocáveis. Só que não.

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  6. "Descobri finalmente aquilo que distingue o homem dos outros animais: são os problemas de dinheiro." Jules Renard

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  7. O modelo que me satisfaça é aquele em que os titulares do poder político saibam o que é serviço cívico, sirvam o poder e não se sirvam dele, que tenham coragem de legislar sobre incompatibilidades, responsabilização ou que façam declarações de interesse antes de eu cair na asneira de lhes dar a cadeira a sentar.
    (E agora vou ver se apanho o barco até à ilha de Thomas More que lá faz sol!)

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  8. Foi sempre assim. É assim. Será sempre assim.
    Está dentro da legalidade ser assim.

    Não se chama crime fiscal. Chama-se consultoria de empresas em paraísos fiscais. E, pasme-se, é legal, reveste-se daquela legalidade que é imposta pela "força" do Estado.
    Crime fiscal é não pedir a factura de um almoço.
    Mas, vendo bem, também não há almoços grátis.

    Pasmo. Vejo tantos "comentadores" alarmados com a instrumentalização da justiça e da comunicação social, os mesmos que se indignaram com os sucessivos escândalos por resolver dos diversos Srs. Engenheiros e Doutores (não, não estou a referir o caro amigo Pipoco, salvo seja). Descobriram agora que a "justiça" e a "comunicação" que temos é uma graçolas de crianças, desde, talvez... sempre!

    E sorrio ao som de A Tourada.
    E mais ainda com a Queixa das Almas Censuradas - "... dão-nos um pente e um espelho / para pentearmos um macaco".
    E acabo por pensar que a questão do eterno retorno talvez afinal tenha algum sentido.
    E espero que se queimem todos uns aos outros, num grande enema de fogo.

    Já nem repulsa sinto. Só um ligeiro desconforto...
    Ah, sonhos e boas intenções...

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  9. Eu gosto do José Gomes Ferreira. Um tipo lúcido que diz umas coisas acertadas,sem papas na língua. E não acho que o modelo esteja podre. Podres estão as pessoas que aproveitam todas as fragilidades do modelo e não têm qualquer sentido de honra ou dever. Este ainda é o melhor modelo. Acontece que o poder corrompe e inebria, é assim desde sempre.

    (Li há pouco tempo os dois primeiros volumes de uma triologia de Robert Harris, a Républica, Conta a ascensão e queda de Cícero ao poder. Em pouco difere dos jogos políticos actuais...)

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    1. Pois... o Gomes Ferreira... anda há muito tempo a fazer o seu trabalho...

      O problema é que o modelo é para ser utilizado por pessoas, pessoas (e grupos de pessoas) que se perpetuam no poder, num poder sem princípios e que se protegem uns aos outros porque todos têm rabos de palha... e o modelo que em teoria era muito bonito, na prática não funciona...

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    2. Verdade, mas dado que a opção é o totalitarismo, com o mesmo nível de corrupção ou pior e sem aquilo da liberdade que, parecendo que não, dá um jeitão, não estou a ver grandes alternativas ao modelo.
      Parece-me que a solução tem que estar nas pessoas e mentalidades. E dou-lhe um exemplo, se for a um país nórdico, ninguém foge aos impostos, e qualquer pessoa que o faça é denunciada pelo vizinho, amigo, etc. A coisa é assumida como uma obrigação inquestionável. Em Portugal, se eu disser que recebo X por fora, o mais provável é darem-me uma palmada nas costas e perguntarem como... para também eles fazerem.
      Nenhum modelo funcionará enquanto as mentalidades não mudarem, modelos perfeitos só com Thomas More...

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    3. O totalitarismo não é alternativa... daí que diga que tem de haver um twist ao nosso modelo de democracia que lhe dê mais credibilidade, qualquer coisa que nós ainda não conseguimos descortinar... e que não passa apenas pelas mentalidades, porque gente sem escrúpulos há-de existir sempre... é que para exemplos inversos, basta olhar para Espanha, França, Itália, etc... estamos todos na mesma!

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    4. Eu diria que o twist até é fácil Palmier. Basta pôr a justiça a funcionar. Reformular o código penal, aumentar penas, diminuir períodos de prescrições, se necessário. Cruzar rendimentos declarados com riqueza aparente, acabar com a pouca vergonha que são os off-shores (ok, isto é utópico..).
      Se esta gente perceber que não fica impune e que apodrece com os ossos na pildra, pensa duas vezes antes de prevaricar. Tem tudo a ver com responsabilização.

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    5. Mas, lá está... o problema é que, quem faz as leis, são os mesmos que podem eventualmente vir a desrespeitá-las...
      daí que, presumo, sejam bem cautelosos quando as redigem...

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    6. Sim e não. Quero dizer.... Que tal começar por aplicar as existentes aos Sócrates, Relvas, Varas, Dias Loureiro, Felgueiras e Arlindos, desta vida?
      Acho que temos aqui uma excelente oportunidade para (re)credibilizar a Justiça Portuguesa. A grande causa do problema é o descrédito na Justiça, é essencial creditarmos que ela funciona.
      Depois é só mudar mentalidades.
      Simples não é?... Pode ser que os nossos netos vivam num mundo mais justo. Sou uma optimista,

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    7. Olha... espero que sim (estou para ver o imbróglio jurídico, a ver se chega a algum lado...) ... é esperar para ver, como diz o outro.

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