sábado, 17 de janeiro de 2015

Fiquei aqui a ler os papéis...

E depois da carta que, imagino, a minha avó terá escrito ao meu avô, deparo-me com o rascunho de uma outra, escrita pela mão da minha avó, não sei a quem e por que razão, mas, conhecendo a minha avó como conheci, quase me parece, esta sim, fruto da minha imaginação. Dizia ela em 1944:

Meu caro amigo,

Não sei se alguma vez estas minhas reflexões te chegarão às mãos, mas o meu poder de observação leva-me a fixar certos ditos que hoje te ouvi defender com um tal calor, que não me deixaram duvidas de que estás certo da tua razão. De acordo com a minha maneira de ver, de sentir e de viver, procuro sempre ponderar intimamente e no silêncio da minha alma, os direitos que todo o mortal tem na vida e, por isso, não gosto de pensar na superioridade como previlégio.
Sempre que se procura um convívio amigo, franco e sério, surge sempre uma ovelha negra que procura ferir, diplomaticamente mas de forma certeira, os menos ilustres, os menos favorecidos de inteligência e até de nível social, esquecendo-se que todos eles têm alma, sensibilidade e coração. Por tudo isto, desculpa que te diga, foste tu a ovelha negra da noite passada. Sou tua amiga e gosto de ter vaidade nos meus amigos, pois respeito-os e estimo-os e não gosto de os ver petulantes.
Vou dar-te a conhecer o que penso a respeito da superioridade tanto do homem como da mulher, pois ambos são os fazedores da vida e, como tal, do mundo. Tanto o homem como a mulher têm qualidades de inteligência equivalente e, por isso, a discussão acaba sempre da mesma forma que principiou. Se Deus tivesse querido fazer seres de apenas um único sexo, o mundo seria monótono e todos se queixariam desse facto, mas como Deus achou por bem dotar a humanidade com homens e mulheres, cada um se queixa do outro. Ora, tu sabes muito bem que há qualidades que distinguem e simultaneamente elevam homem e mulher. Na minha opinião o homem é a mais elevada das criaturas, mas a mulher o mais sublime dos ideais, o homem a águia que voa, a mulher o rouxinol que canta. Voar é dominar o espaço, cantar é conquistar a alma. O homem é o cérebro, a mulher é o coração. O cérebro fabrica a luz, o coração produz o amor. O homem é génio, a mulher anjo. O génio é incomensurável, o anjo indefinível. O infinito contempla-se, o indefinível admira-se. A aspiração do homem é a suprema glória; a aspiração da mulher a virtude extrema. A glória faz o que é grande, a virtude o divino. O homem tem a supremacia, a mulher a preferência. A supremacia significa força, a preferência o direito. O homem é forte pela razão, a mulher invencível pelas lágrimas. A razão convence; as lágrimas comovem. O homem é capaz de todos os actos de heroísmo, a mulher de todos os martírios. O heroísmo enobrece, o martírio sublima. O homem tem um leme, a consciência, a mulher uma estrela, a esperança. O leme guia, a esperança salva. O homem está colocado onde termina a terra, a mulher onde principia o céu.

Depois de tudo o que te descrevo, tens de concordar que homem e mulher são, afinal, um para o outro e não, como dizias ontem, um contra o outro. Espero que ponderes em tudo isto e, se o fizeres, estou certa que na próxima vez que nos encontrarmos apertaremos as mãos com amizade e respeito. Como mulher de fé que sou, conto contigo.

Um abraço com o tal aperto de mão,

J.


Estou aqui absolutamente estupefacta... é que, afinal, a minha avó era uma feminista do seu tempo! É estranhíssimo... nunca me dei conta.

37 comentários:

  1. Uau!
    (é estúpido mas foi o que me ocorreu em primeiro lugar)

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  2. Pois Palmy... Ás vezes as pessoas não parecem aquilo que são... :))

    (O engraçado é que se verbaliza quase sempre o recíproco: O das pessoas não serem aquilo que parecem... Hum... Vou ali para o quentinho pensar sobre isto!)

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    1. :)))) eh pah... acho que também tenho de ir ali para o quentinho tentar perceber! :DDDDDDDDDDDDD

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    2. (Não te esforces muito... Passando da meia noite tolhe-se-me o raciocínio...)

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    3. Mas como foi à meia noite em ponto... Olha... Vai... Mas estás por tua conta e risco, não garanto que faça algum sentido...... É que está ali no border line (ah pois é bebé... eu também falo estrangeiro...)...

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    4. Olha... se amanhã não der notícias... Já sabes! : DDDDDDD

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  3. Maravilhoso!!
    Cá para mim a Palmier é muito neta da sua avó! ;)

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  4. E que bem escrevia a avó. Magnífico.

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  5. esta brutal foi Partilhar o terceiro paragrafo no Mural do meu facebook

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  6. Que missiva maravilhosa! :) Não haverão por aí mais assim que possam ser partilhadas?

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  7. Nunca conhecemos verdadeiramente os outros. Nem quem nos é muito próximo.
    E que mulher extraordinária era a sua avó! :)

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  8. Que maravilha de escrita e de pessoa.

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  9. Chapeau! E assim se honra os antepassados mostrado que isso da genética até é coisa séria.

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  10. Uau, completamente out of the box para 1944, muito antes de nos chegarem as modernices transatlânticas do pós guerra.
    A genética explica e convence. :) :) :)

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  11. Já venho tarde mas não posso deixar de dizer que é um texto maravilhoso! Antigo e moderno ao mesmo tempo....

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  12. Estou aqui a pensar que a tua avó gostaria de saber que outros leriam os seus escritos.
    Sabes que quando construiu a varanda da buganvília deu aos pedreiros uma caixa com coisas que escreveu para que um dia mais tarde alguém encontrasse. Ainda lá está dentro de um pilar.

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    1. Podíamos fazer à casa aquilo que eu fazia ao bolo-rei... desfazê-la até encontrar o brinde:)))))

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    2. Se precisarem de ajuda, contem comigo :)

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  13. Tiro o meu chapéu á sua avó!! Que mentalidade para a época! Já percebi porque escreve tão bem!

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  14. Aí está algo que nunca farei. Ler cartas das minhas avós. Nenhuma sabia ler ou escrever.
    Fascinante reflexão.

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  15. Uau... Não há mais palavras que possam ser ditas... Que orgulho, Palmier, que pessoa!
    Merece ser partilhado...

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  16. A sua avó lia Victor Hugo :) Bom senso e bom gosto.

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