E depois da carta que, imagino, a minha avó terá escrito ao meu avô, deparo-me com o rascunho de uma outra, escrita pela mão da minha avó, não sei a quem e por que razão, mas, conhecendo a minha avó como conheci, quase me parece, esta sim, fruto da minha imaginação. Dizia ela em 1944:
Meu caro amigo,
Não sei se alguma vez estas minhas reflexões te chegarão às mãos, mas o meu poder de observação leva-me a fixar certos ditos que hoje te ouvi defender com um tal calor, que não me deixaram duvidas de que estás certo da tua razão. De acordo com a minha maneira de ver, de sentir e de viver, procuro sempre ponderar intimamente e no silêncio da minha alma, os direitos que todo o mortal tem na vida e, por isso, não gosto de pensar na superioridade como previlégio.
Sempre que se procura um convívio amigo, franco e sério, surge sempre uma ovelha negra que procura ferir, diplomaticamente mas de forma certeira, os menos ilustres, os menos favorecidos de inteligência e até de nível social, esquecendo-se que todos eles têm alma, sensibilidade e coração. Por tudo isto, desculpa que te diga, foste tu a ovelha negra da noite passada. Sou tua amiga e gosto de ter vaidade nos meus amigos, pois respeito-os e estimo-os e não gosto de os ver petulantes.
Vou dar-te a conhecer o que penso a respeito da superioridade tanto do homem como da mulher, pois ambos são os fazedores da vida e, como tal, do mundo. Tanto o homem como a mulher têm qualidades de inteligência equivalente e, por isso, a discussão acaba sempre da mesma forma que principiou. Se Deus tivesse querido fazer seres de apenas um único sexo, o mundo seria monótono e todos se queixariam desse facto, mas como Deus achou por bem dotar a humanidade com homens e mulheres, cada um se queixa do outro. Ora, tu sabes muito bem que há qualidades que distinguem e simultaneamente elevam homem e mulher. Na minha opinião o homem é a mais elevada das criaturas, mas a mulher o mais sublime dos ideais, o homem a águia que voa, a mulher o rouxinol que canta. Voar é dominar o espaço, cantar é conquistar a alma. O homem é o cérebro, a mulher é o coração. O cérebro fabrica a luz, o coração produz o amor. O homem é génio, a mulher anjo. O génio é incomensurável, o anjo indefinível. O infinito contempla-se, o indefinível admira-se. A aspiração do homem é a suprema glória; a aspiração da mulher a virtude extrema. A glória faz o que é grande, a virtude o divino. O homem tem a supremacia, a mulher a preferência. A supremacia significa força, a preferência o direito. O homem é forte pela razão, a mulher invencível pelas lágrimas. A razão convence; as lágrimas comovem. O homem é capaz de todos os actos de heroísmo, a mulher de todos os martírios. O heroísmo enobrece, o martírio sublima. O homem tem um leme, a consciência, a mulher uma estrela, a esperança. O leme guia, a esperança salva. O homem está colocado onde termina a terra, a mulher onde principia o céu.
Depois de tudo o que te descrevo, tens de concordar que homem e mulher são, afinal, um para o outro e não, como dizias ontem, um contra o outro. Espero que ponderes em tudo isto e, se o fizeres, estou certa que na próxima vez que nos encontrarmos apertaremos as mãos com amizade e respeito. Como mulher de fé que sou, conto contigo.
Um abraço com o tal aperto de mão,
J.
Estou aqui absolutamente estupefacta... é que, afinal, a minha avó era uma feminista do seu tempo! É estranhíssimo... nunca me dei conta.
Uau!
ResponderEliminar(é estúpido mas foi o que me ocorreu em primeiro lugar)
Também fiquei mais ou menos assim, Mirone :))))
EliminarPois Palmy... Ás vezes as pessoas não parecem aquilo que são... :))
ResponderEliminar(O engraçado é que se verbaliza quase sempre o recíproco: O das pessoas não serem aquilo que parecem... Hum... Vou ali para o quentinho pensar sobre isto!)
:)))) eh pah... acho que também tenho de ir ali para o quentinho tentar perceber! :DDDDDDDDDDDDD
Eliminar(Não te esforces muito... Passando da meia noite tolhe-se-me o raciocínio...)
Eliminar:DDDDDDDDDDD
EliminarMas como foi à meia noite em ponto... Olha... Vai... Mas estás por tua conta e risco, não garanto que faça algum sentido...... É que está ali no border line (ah pois é bebé... eu também falo estrangeiro...)...
EliminarOlha... se amanhã não der notícias... Já sabes! : DDDDDDD
EliminarKinaste!
EliminarMaravilhoso!!
ResponderEliminarCá para mim a Palmier é muito neta da sua avó! ;)
A Palmier é toda ela neta da sua avó! <3
Eliminar:))))
EliminarE que bem escrevia a avó. Magnífico.
ResponderEliminar:)
Eliminaresta brutal foi Partilhar o terceiro paragrafo no Mural do meu facebook
ResponderEliminarOk.
EliminarQue missiva maravilhosa! :) Não haverão por aí mais assim que possam ser partilhadas?
ResponderEliminarHá mais, sim... :)
EliminarNunca conhecemos verdadeiramente os outros. Nem quem nos é muito próximo.
ResponderEliminarE que mulher extraordinária era a sua avó! :)
:)
EliminarQue maravilha de escrita e de pessoa.
ResponderEliminar:)
EliminarChapeau! E assim se honra os antepassados mostrado que isso da genética até é coisa séria.
ResponderEliminar:)
EliminarUau, completamente out of the box para 1944, muito antes de nos chegarem as modernices transatlânticas do pós guerra.
ResponderEliminarA genética explica e convence. :) :) :)
Já venho tarde mas não posso deixar de dizer que é um texto maravilhoso! Antigo e moderno ao mesmo tempo....
ResponderEliminar:)))
EliminarEstou aqui a pensar que a tua avó gostaria de saber que outros leriam os seus escritos.
ResponderEliminarSabes que quando construiu a varanda da buganvília deu aos pedreiros uma caixa com coisas que escreveu para que um dia mais tarde alguém encontrasse. Ainda lá está dentro de um pilar.
Podíamos fazer à casa aquilo que eu fazia ao bolo-rei... desfazê-la até encontrar o brinde:)))))
EliminarSe precisarem de ajuda, contem comigo :)
EliminarTiro o meu chapéu á sua avó!! Que mentalidade para a época! Já percebi porque escreve tão bem!
ResponderEliminar:)
EliminarAí está algo que nunca farei. Ler cartas das minhas avós. Nenhuma sabia ler ou escrever.
ResponderEliminarFascinante reflexão.
Magnífico texto cara Palmier.
ResponderEliminarUau... Não há mais palavras que possam ser ditas... Que orgulho, Palmier, que pessoa!
ResponderEliminarMerece ser partilhado...
A sua avó lia Victor Hugo :) Bom senso e bom gosto.
ResponderEliminarBoa leitura!
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