terça-feira, 6 de maio de 2014

Lá no Oeste

Quando se está no meio de nenhures e o pão se acaba, é bom que se saiba onde o encontrar. E nós, pessoas extremamente rurais em part-time, sabemos que, numa aflição, podemos bem dirigir-nos a casa do senhor Valente que, sendo o feliz possuidor de um forno a lenha, conta sempre com a nossa falta de olho para as quantidades. Acontece que ir a casa do senhor Valente não é uma tarefa tão evidente como a uma primeira vista se poderia pensar. Ir a casa do senhor Valente é aquilo que a ciência, se se dignasse estudar tal fenómeno, designaria, seguramente, como uma experiência tri-dimensional. Para começar, é necessário atravessar uma perigosa floresta de limoeiros, correndo-se sérios riscos de aí ficar eternamente a deambular, por entre florzinhas brancas e o odor cítrico que se desprende das árvores como de um frasco de perfume; imediatamente a seguir a este momento idílico, é necessário reunir todas as forças para, com a ajuda de um pau, enxotar a matilha de cães selvagens que o senhor Valente tem em volta da casa e, por fim, é necessário preparar a alma para lidar com a fé do senhor Valente, já que a fé do senhor Valente não é uma fé qualquer.
Assim, uma vez ultrapassadas as duas primeiras provações, o senhor Valente vem à porta, uma velha porta de madeira cansada que range como dois gatos dentro de um saco e, depois de uma saudação breve, e por mais voltas que se dê e por mais que se tente evitar, a conversa acaba invariavelmente por escorregar para a peregrinação do senhor Valente. É que, nos idos anos 90, no auge do seu fervor religioso, o senhor Valente foi a Fátima e de lá trouxe uma Nossa Senhora que se transformou, nada mais nada menos, que na luz dos seus olhos. 
- Oh Rosa... traz lá a Nossa Senhora para mostrar aqui à D. Palmier!
E nesse momento, a pessoa imagina uma Nossa Senhora de palmo e meio, daquelas Nossa Senhoras que antigamente havia nos oratórios. Acontece que a Nossa Senhora do senhor Valente também não é uma Nossa Senhora qualquer, é uma Nossa Senhora à medida da sua fé. Mas a pessoa tem pouco tempo para dar largas à imaginação já que, no segundo seguinte, aparece a Rosa, pessoa franzina e de fraca aparência, abraçada a uma Nossa Senhora de tamanho real, seguida pela sua filha, de cara achatada e olhinhos piscos, ajoujada sob o peso das pombas que carrega no regaço. E perante o olhar embevecido do Senhor Valente, a Rosa sai de casa em procissão, depõe a Nossa Senhora no quintal, enquanto a filha se atarefa a dispor as pombas em seu redor. E, depois de um minuto em que admiramos num silêncio reverente a Nossa Senhora tamanho XXL,  o Senhor Valente acorda do seu transe, estala a língua e diz:
- Oh Rosa... podes levar a Nossa Senhora!
E assim acontece, a Rosa agacha-se e volta a abraçar a Nossa Senhora pela cintura, a filha recolhe as pombas no regaço e partem as três em procissão, percorrendo o caminho inverso, perdendo-se lá dentro, no interior da santa casa, até uma nova oportunidade de ver a luz do sol. 

E é assim que, a simples compra de um pão, se transforma numa experiência mística. É que é caso para dizer que, no presente mês de Maio, também eu, tive direito à minha própria Aparição.

33 comentários:

  1. Os meus avós eram grandes devotos de Nossa Senhora, o avô era Servita de Nossa Senhora, fazia voluntariada em Fátima, a todos os dias 13, para receber os doentes e peregrinos, e usava sempre uma estrelinha azul clara com as letras SNS na lapela do casaco, mas só tinha uma Nossa Senhora pequenina no quarto.
    Em casa dos meus pais vai-se levar a Nossa Senhora - um oratório pouco maior do que uma caixa de sapatos que corre todas as casas que manifestem esse desejo - a casa do vizinho que no dia seguinte a levará ao outro vizinho (tradição que se herdou dos meus avós e de que me lembro desde sempre).
    Se a campainha toca por volta das 20h00 já se sabe, é a vizinha que vem trazer a Nossa Senhora. Lembro-me tão bem do dia em que pela primeira vez pude ir sozinha levar a Nossa Senhora à minha vizinha, tinha uns doze anos, "Segura com cuidado e a mão por baixo".

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    1. :)

      (ainda assim, acho que deviam ponderar uma Nossa Senhora de grandes dimensões... ;)

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    2. Mas olha que uma vez vi um terço gigante, as contas eram do tamanho de nozes, por cima de uma cabeceira e fiquei maravilhada - em criança deslumbramo-nos com tudo o que seja diferente... :D (o sr. Valente também deve ter um).

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    3. Mirone, não me digas que estiveste em casa dos meus Pais... é que eles tinham um terço desses por cima da cabeceira da cama...! ;)

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    4. Não, era mesmo em casa da vizinha...

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    5. O meu pai ( elegante e simpático ex-ajudante de missa) pessoa cuja aversão a igrejas e padres desenvolveu uma dimensão assustadora, venerava a Senhora de Fátima, com idas regulares ao local da devoção. Curiosamente achava "aquilo dos pastorinhos" um embuste... :):)

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  2. Que sortuda! Tu própria foste uma verdadeira aparição para o senhor Valente. Assim ele mostrou a sua maravilhosa Maria, mãe de Deus.

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    1. Praticamente uma hóstia! :DDDDDDDDDD

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    2. :DDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDD
      https://www.youtube.com/watch?v=uiziWLTVVLU

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    3. Arranjem lá um cantinho para mim!! :DDDD

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    4. Está garantido! Desde que venhas com a Biblier, evidentemente!

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    5. Levo uma mala cheia para distribuir pelos restantes, com direito a sessão de autógrafos pela Mestre!

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    6. Com a Nossa Senhora a abençoar, tenho a certeza que vai ser um sucesso! :DDDDDD

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  4. Ai, esta escrita! (deliciosa!)

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    1. Realmente. Que "imbeija". Quem me dera escrever assim.

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  5. Consegui imaginar toda a cena e até me comovi. A fé das pessoas e , não estou a criticar, comove-me sempre e deixa-me também um pouco "invejosa " por não ser capaz de ter uma fé tão simples.

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    1. Verdade ana, o mesmo comigo...

      (Oh Palmier... Tu escreves tão, mas tão, bem...)

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    2. E as procissões também te dão vontade de chorar NM? A mim sim, mesmo que tenham muitas coisas ridiculas...Devo ter uma deficiência qualquer ...

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    3. Também sim! E as peregrinações idem.

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    4. Caramba... tenho de vos levar a casa do senhor Valente... tenho a certeza que, perante a vossa comoção, a nossa senhora vai fazer o percurso várias vezes! Vai ser um dia em cheio para o senhor Valente :DDDDDDD

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    5. Isso é que tu eras valente... :DDDDD (Pá... Já sabes que não resisto ao óbvio!)

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    6. Finalmente alguém que compreende o meu problema!:)

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    7. É caso porá dizer " calma com o andor"
      Bem me pareceu que tinhas demorado pouco tempo...
      Não tiveste direito à história da caminhada, ao estado lastimável dos sapatos e depois dos pés, nem tão pouco foste informada sobre o transporte da Nª Srª que devidamente embrulhada, pagou lugar de pessoa para vir no lugar ao lado do Sr Valente que a amparou todo o caminho.
      A história tem meandros fantásticos. Um dia conto-te.

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    8. Ahahahahahahahahahahahahhahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahaahhahahaahhahahahahahahahahahaha

      Até já estou a fazer o filme! :DDDDDD

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  6. Consigo imaginar perfeitamente. Sendo o Marido duma vila de Braga no sopé do Gerês, sempre que lá vamos temos que fazer aquilo que chamo "ronda das capelinhas":
    Comer muito e beber vinho verde tinto( Arrrghhh) e ver os oratórios e os santinhos que todos os parentes ( que são ainda alguns) têm em casa...
    Bem sei que temos a sorte de não ter que atravessar o campo minado dos limoeiros nem lutar com as matilhas selvagens, mas eu trocava o perigo pelas malgas daquela coisa horrível !!!

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    1. Isso diz a MD... sempre a queria ver a desbravar uma floresta de limoeiros! :DDDDDDDDD

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  7. Palmier, gosto tanto de ler estas tuas histórias.

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