sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A Dona Feliciana e as duas aranhas grandes e pretas

A Senhora Dona Feliciana veste de preto integral, que desde que o marido lhe morreu a cor da roupa condiz-lhe com o coração, e isto apesar da irmã mais nova, má como as cobras, a enxovalhar diariamente, perguntando-lhe de forma insolente porque não veste outra roupa. Ora, porque esta é a minha roupa, não é verdade senhora doutora?, da cor do meu coração! Diz a Dona Feliciana convicta. A Dona Feliciana vive há sessenta anos numa casa arrendada que detesta. Detesta a casa mas, mais ainda, detesta a Senhoria, ai senhora doutora, nem imagina, aquela mulher é uma ci-ga-na, e diz isto com verdadeiro ódio, sibilando cada palavra, quase consigo ver a língua bifurcada de cada vez que fala na senhoria, faz-me  a vida negra, da cor do meu coração, só quer saber de fazer obras no primeiro andar e no meu, nada! Na-di-nha! E desde que lá puseram aquele restaurante por baixo, tenho a casa a tresandar a refogado desde as nove da manhã! Até se me esqueceu de como é que se cozinha, logo eu que fazia umas comidinhas tão boas. E com olhos sonhadores relembra as comidinhas que fazia mas de que já não se lembra. Mas, Dona Feliciana, porque não compra uma casinha, ou, se não quiser gastar muito dinheiro,  arrenda… e ela afasta essa ideia com a mão, como se fosse uma mosca, nã, nã… já não vale a pena, já não vale a pena…. se eu pudesse, diz muito séria, com uma expressão de devaneio no rosto emoldurado pelo cabelo de plix roxo, tinha era uma televisão no quarto. Mas, Dona Feliciana, compre uma televisão! Ah, senhora doutora… não cabe! Sabe lá, eu para passar daqui para aqui, e faz gestos com as mãos explicando a disposição dos móveis, tenho de saltar por cima da cama! Mas Dona Feliciana, agora há umas televisões fininhas, que se penduram na parede, como um quadro. Se quiser arranjamos alguém para lhe tratar disso. Ah, senhora doutora, não cabe, não cabe… e vê-se a expressão desconfiada com a ideia de uma televisão fininha que parece um quadro.

A Dona Feliciana que sempre fez contas à vida e nunca gastou um tostão a mais, chegou aos oitenta e nove anos com um bom pé-de-meia, mas esse pé-de-meia, ao invés de lhe proporcionar bem-estar e alegria, causa-lhe as maiores apoquentações. Pior, é um drama, um sofrimento, uma angústia! É que a Dona Feliciana vive apavorada com as meninas dos bancos. Que a querem enganar! Ora é a do banco verde que lhe diz que havia de pôr lá o dinheiro, dê-me lá uma ajudinha, Dona Feliciana, que a gente aqui precisa mais do que os outros, ora é a do banco vermelho que lhe telefona a dizer que ela já não aparece há muito tempo, venha cá fazer-nos uma visita, e a Dona Feliciana, que enquanto o marido era vivo nunca tratou destas coisas, veste-se a correr para ir imediatamente prestar a visita para que foi requisitada, vem pela rua fora, esbaforida, entra no banco vermelho às escondidas da menina do banco verde, do outro lado da rua, e no banco verde  às escondidas da menina do banco vermelho, não vão as meninas dar conta da infidelidade da Dona Feliciana, que aí é que estava o caldo entornado e lhe davam sumiço ao dinheiro. Cada vez que recebe uma carta do banco é uma agonia, é desta que me levaram tudo, vem com o papel na sua pastinha preta para mostrar. Não Dona Feliciana, esteja descansada, não é nada, está tudo bem, ai senhora doutora, que grande aflição! A minha vida é um verdadeiro terror, um terror!, diz a Dona Feliciana olhando para o extracto bancário sem nada perceber, parece que estou dentro de uma teia de aranha, feita por duas aranhas grandes e pretas e não consigo de lá sair! 

6 comentários:

  1. Pobreza intrínseca, para não dizer palavrões...

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  2. Está mesmo. Numa teia que ela, vestida de preto como as aranhas, teceu.

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  3. Bela história,... eu tenho uma Dona Feliciana dentro de mim, mas só que esta, além de se assustar com o banco também se assusta com os exames médicos. Sempre que entro num consultório para os mostrar fico à espera que diga: "Bom,...errr. Pois,... isto aqui, tem 24h de vida.." Juro que vejo o médico dizer isto, só depois é que processo que só esteve a anuir, a comparar valores e a ver a banalidade eu ser "normal". Mas morro sempre um bocadinho por dentro, vejo já o meu funeral, começo a pensar o que dou a quem, coisas para pôr em ordem. São os 5 segundos mais longos da minha vida.
    Aiii como eu percebo a Dona Feliciana...

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  4. Doce Palmier,
    Será caso para dizer que tem o dinheiro da cor do seu coração.
    Um beijo,
    Outro Ente.

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  5. Pobre D. Feliciana... Pelo menos que cometesse a "loucura" de comprar a televisão fininha, para lhe alegrar um bocadinho os dias da cor do seu coração...

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