quarta-feira, 18 de março de 2015

A Assembleia-Geral

O afã começa logo da parte da manhã, com o cuidado que o Senhor Pereira dispensa à arrumação da sala de reuniões, organização dos vários exemplares do Relatório e Contas finamente encadernados e perfeitamente alinhados em cima da mesa, garrafinhas de água acompanhadas dos respectivos copos e, para rematar, canetas e blocos de notas que ficam invariavelmente por utilizar e que passam de ano para ano como relíquias preciosas. 
Depois, aí pelas duas e meia da tarde, começam a chegar os convivas, para a Assembleia que se encontra marcada para uma hora mais tarde. No fundo trata-se de um dia especial, que não permite atrasos ou contratempos de qualquer espécie, pelo que mais vale prevenir e chegar um "bocadinho" mais cedo. 
A primeira a apresentar-se é invariavelmente a Senhora Dona Teresina, viúva de um dos sócios, leva o seu papel muito a sério e, com os seus oitenta e seis anos apresenta-se munida da sua pastinha preta de aspecto profissional, que contém apenas uma caneta, a única caneta com que consegue assinar, aquela com que consegue ludibriar o Parkinson. Pergunta sempre pela família e pelos meninos e senta-se numa cadeira, a olhar em frente, à espera. A Senhora Dona Teresina sofre muito dos nervos por causa dos senhores dos bancos, que lhe telefonam amiúde com propostas indecorosas de depósitos e aplicações que a Senhora Dona Teresina não compreende. Ultimamente tem sido fustigada por telefonemas do Novo Banco, ou “os verdes”, como lhes chama, que lhe explicam que os outros, os da Caixa Geral, têm lá muito dinheirinho e que a Senhora Dona Teresina havia de ser boazinha e havia de passar uma parte do dinheiro que tem nos "outros" aqui para nós, para ficarmos todos mais equilibrados, e a pessoa ainda lhe diz que não vale a pena ficar naquele estado de nervos, que a Senhora Dona Teresina diga lá aos senhores do Novo Banco que se lhe voltarem a falar nesse assunto tira de lá o dinheiro todo e que o deposita no Totta, mas a Senhora Dona Teresina sente medo dos senhores do banco, que é uma pessoa sozinha, e hoje em dia nunca se sabe, “ainda me fazem mal!” De qualquer forma, não adianta dizer-lhe grande coisa, que a Senhora Dona Teresina não ouve nada porque se recusa a usar o aparelho auditivo. O segundo a chegar é o Senhor Manuel, sobe a escada de bengala mas abandona-a à porta, para parecer mais jovem que os seus oitenta e nove anos. O senhor Manuel não perde tempo e fala de todos os médicos a que tem ido, e têm sido muitos, tínhamos ali conversa para vários dias, doenças, medicamentos e mezinhas, consultas, cirurgias, hospitais, anestesias e analgésicos, tratamentos e fisioterapias, o que se quiser, como na feira, tudo contado com incrível detalhe, detalhes que na verdade ninguém quer saber mas que todos ouvem acenando com fingida atenção. De seguida chegam os restantes sócios, o ROC, o TOC, e ali ficam a conversar sobre o estado das coisas, o Governo e os impostos, que já se sabe, isto está tudo muito mau e a tendência é para piorar. Por fim, às quinze e trinta em ponto, chega finalmente o Presidente da Assembleia-Geral, cargo que é ocupado pela mesma pessoa vai para cima de trinta anos. O Presidente, advogado outrora famoso, foi refinando com a idade, e agora, aos oitenta e oito anos e assumiu-se claramente como um machista arrogante e abjecto que nutre um profundo desprezo por todas as mulheres que se atrevam a ser mais do que umas simples e extremosas donas de casa, uma espécie de militante do Estado Islâmico, versão 1940, com quem, naturalmente, mantenho um sanguinário diferendo vai para cima de dez anos. Pois então o nosso Presidente entra, cumprimenta-me em primeiro lugar, e fá-lo como habitualmente, "gosto em vê-la Xôtora, ah, mas está com muito melhor aspecto!” E depois de me avaliar de cima a baixo, larga a primeira granada, "engordou aí um quilo e meio, não?" fugindo de imediato, antes que lhe possa sequer responder, apressando-se a cumprimentar todos os presentes como se nada fosse. Feitos todos os cumprimentos, sentamo-nos finalmente à mesa e, num ambiente vagamente religioso, dá-se finalmente início à Assembleia-Geral. Ao mesmo tempo que se lê o ponto um da Ordem de Trabalhos, circula o livro de presenças que vai sendo assinado à vez. É portanto enquanto se analisa o exercício de 2014, que a Senhora Dona Teresina abre a sua pasta preta de executiva, de lá retira a sua caneta mágica, respira fundo como que para ganhar coragem para aquela pesada responsabilidade anual, profere um audível “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, benze-se e então sim, guiada pela força de Deus, arremete finalmente contra o livro de presenças, para aí deixar a sua assinatura, a prova do cumprimento da sua obrigação. Nisto, e enquanto se analisam os números, o Presidente pára tudo, volta a olhar para mim - que tinha passado a manhã de um lado para o outro, à chuva- "a Xôtora tem um penteado novo?" "Não Xôtor, não tenho", "ah, estou a ver... foi então ao cabeleireiro?" "Fui sim, Xôtor, fui fazer o meu Penteado-Especial-Assembleia", e com esta terrível dúvida esclarecida passamos então à votação das contas de 2014, através do método de sentados e levantados, que reforça a ideia sacro-santa do evento - quem é a favor deixa-se ficar sentado, quem é contra deve levantar-se -, método terrível, que toda a vida impediu os sócios minoritários, já de si inibidos pela situação, de votar contra fosse o que fosse, obrigando, aliás, a que todos fiquem absolutamente imóveis, não vá dar-se o caso de um qualquer gesto ser tomado como um voto contra. Foi enquanto se analisava o ponto seguinte da ordem de trabalhos que se abriram umas garrafinhas de água para descontrair, que isto de votar contas por unanimidade é coisa cansativa, uma água para aqui, outra para ali, e a Senhora Dona Teresina, quer uma aguinha? E a Senhora Dona Teresina estica o braço, olha fixamente para o relógio (?) e, depois de uma pausa de vários segundos para estudar o mostrador, responde convicta: "ainda não, obrigada!". Por fim, e uma vez analisados e votados todos os pontos da ordem de trabalhos, são então feitos os costumeiros votos de louvor, louvam-me a mim, louvam os outros dois gerentes, homens de barba rija, louvam-nos muito com diversos hossanas e, depois de termos sido profusa e devidamente louvados, dá-se por encerrada a Assembleia, e o Xôtor, já esquecido da sua bomba inicial volta a dizer-me "Muito gosto em vê-la! Está com muito bom parecer! À última vez que a vi tinha uns bons quilos a menos. Talvez cinco ou seis, não? Foi Xôtor, engordei quatro ou cinco agora mesmo, durante a Assembleia...


Daqui a uns dias havemos de receber o livro de actas, porque a nossa acta ainda é passada ao livro, com letra desenhada, que o Senhor Presidente não acredita nessa coisa da informática, que não é de fiar e, miraculosamente, vamos voltar a constatar que lá constarão os louvores dirigidos aos homens de barba rija, mas que o senhor Presidente vai voltar a fazer desaparecer os meus próprios louvores, e, caramba, nunca lhe hei-de perdoar isto do furto dos meus louvores! É que uma mulher ressente-se com estas coisas! Levem-me tudo, mas deixem-me os meus louvores! 



41 comentários:

  1. Engordaste quatro ou cinco kilos na assembleia? Ficaste inchada com os louvores que depois o Senhor Presidente te furta. daí apareceres sempre tão elegante nas sessões fotográficas.

    (escusado será dizer que a tua escrita é deliciosa)

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    1. É verdade... tenho esta incrível capacidade de engordar permanentemente e de todas as vezes que o encontro! :DDDDDDD

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  2. Ó pá, isso não se faz!
    Caramba o homem sempre a implicar contigo e depois ainda tira de lá os louvores???
    Coitadinha Palmy, mas olha, ele já tem uma certa idade não é?
    Entretanto muda-se o presidente não?

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    1. É incrível, não é? Como é que uma pessoa depois vive sem os seus louvores?!

      (já está tão velhinho... faz parte da mobília...)

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  3. :D Eu se fosse à Palmier pedia que ficasse em acta o seu peso exacto, só para que o Xôtor não tivesse por onde pegar na próxima reunião.
    Homens à antiga, é o que é, temos um destes na família, o bisavô paterno de macaquitos mas que tem quebrado bastante desde que eu entrei para a família. Sou a única mulher que pode falar de futebol com os homens e quando é preciso tartar de algum asunto mais importante sou eu que falo com ele, já que mais ninguém o enfrenta. E ele respeita-me, essa é que é essa!

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    1. :DDDDDDDDDDDDD
      Para o ano levo uma balança! Por via das dúvidas peso-me antes e depois!

      (este nunca respeitará mulher alguma...)

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    2. O quê, mas vovês não se pesavam já antes de todas as AG?! O senhor Pereira é sempre tão diligente deixou passar um requisito fundamental como esse. Não sei não, Palmy, mas se calha algum sócio, ou o próprio senhor presidente, reparar nisso é capaz de invocar a nulidade das últimas aprovações de contas. Vê lá isso, ainda por cima se o Senhor presidente é um ex-causídico de renome... :DDDD

      Ah, esquecia-me disto: PALMIER A PRESIDENTE, JÁ!

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  4. Lembrei-me da minha mãe que toda a vida foi muito elegante, alta e magra. Tinha uma amiga, que tinha uma prima, completamente o contrário da minha mãe, baixa e muito gorda. Essa senhora sempre que via a minha mãe , dizia , invariavelmente: M. estás mais gorda!

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    1. Este senhor também sempre foi super gordo! :D Mas ele diz isto a TODAS as mulheres...

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    2. Eu sou magra e há uma pessoa ao contrário de mim, qu sempre que me encontra diz: Estás mais gorda não estás???? Peso o mesmo há 15 anos....

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  5. Sabes o que sinto neste momento: Felicidade. Quero um livro teu. Já!

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  6. Calculo que a D. Teresina tenha ouvido muita coisa da reunião. E folgo em saber que cumpre as horas para beber água, não fosse o diabo tecê-las.

    Quero tal uma crónica semanal destas maravilhosas histórias! Não me enjoava, garanto.

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    1. Nada! Não ouve nada! Está só ali, seráfica :D

      (era preciso que todas as semanas houvesse uma história assim, divertida :D)

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    2. Mas, na minha mente, a vida da Palmier é divertida até a dormir!

      Mas aí é que está: o momento não é divertido, a Palmier é que os torna. Aí é que reside a magia ;)

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  7. Está visto que foi da água. Palmier, envolvida que está na dieta de cutxi, habituou-se aos 5l de água diária. Foi por isso surripiando, sem sequer se dar conta, as garrafinhas que Dona Teresina ia mandando vir, para o caso de chegar a hora do golinho.
    O seu texto é tão engraçado.

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  8. Sabe que se um dia lhe disser que tem uma legião de fãs e que, inclusive muitas delas acham que deveria ser presidente, o exmo, sr. tem um enfarte?
    Mera sugestão...

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  9. ;))))

    Consegui identificar a Dona Teresina como uma condómina que tive ali no Lumiar, madeirense, com as manitas sempre trémulas, o pescocinho muito magro e pelado, e um cabelame cheio de laca.
    Grande memória me trouxeste.

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  10. Quando li a parte do Benzer só me lembrei do "Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, bicha volta a ter o teu encanto!" By Bicha do Demónio. Esse xotor faz lembrar o Mr. Scrooge do escritório onde trabalhei alguns anos com os tubarões da labuta jurídica. Era uma bela peça!

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    1. Ah... mas o teu Mr. Scrooge é melhor que o meu! No escritório do meu, mulher não entra! :D

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  11. Louvores ao texto!!! Muitos louvores!!!
    Que venha o livro!!

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    1. Finalmente! Os meus louvores! Estes ninguém mos tira! : DDDDDDDDDDDDDD

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  12. Escrita maravilhosa Palmier, é um prazer passar por aqui!!
    Marília

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  13. Este texto está uma delicia! Esse Presidente é um homem .....nem consigo classificar!

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  14. Inspiração ao quadrado: para escrever o texto e aquela outra, profunda e Ohmmmmm, para entrar na sala de numa assembleia geral que quase parece um conto do Edgar Allen Poe. :) :) :)

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  15. Delicioso! Está de louvar, Xôtora Palmier! :)

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