sexta-feira, 24 de abril de 2015

A prima Maria Frederica

A Maria Frederica era uma mulher linda, alta, exuberante, com um corpo elástico, perfeito, cabelos escuros e compridos, boca cor-de-rosa de lábios cheios, maçãs do rosto altas e marcadas, daquelas mulheres que até nós, mulheres, ficamos embasbacadas a olhar, aquelas mulheres a quem se perdoa tudo, as que podem tudo, que têm um íman, que são fortes e fracas ao mesmo tempo. Para além de linda, a Maria Frederica era moderníssima. Enquanto todos as outras se passeavam de fato-de-banho completo em tons de castanho, a prima Maria Frederica tinha uma imensa colecção de biquínis coloridos, biquínis exclusivos desenhados pelo seu marido, o João. O João também lhe desenhava as roupas, levava os tecidos à modista, dava indicações sobre o corte adequado, as linhas, os botões, fazia-lhe penteados e escolhia-lhe os acessórios com que ela deixava toda a gente boquiaberta. O João, apesar de adorar a Maria Frederica, a sua boneca de estimação, era bem sabido, também adorava homens. Aliás, perdia-se por eles. E isso, como é óbvio, causava algumas tensões entre o casal.
Num dos muitos dias de praia, daqueles em que a Maria Frederica levava os seus biquínis e a as suas pestanas postiças para o areal, sempre arranjadíssima e com maquilhagem completa, deitada em forma de esfinge do deserto sobre a sua toalha, as coisas correram menos bem. Nesse dia a Maria Frederica deixou tudo para trás e voltou para casa a pé, sozinha, e arrasada. Veio a chorar pelo caminho fora, e, mal entrou na rua de casa da minha avó, começou a chamá-la lá do fundo, desesperada:

- "Margaret! Margaret!", gritava a Maria Frederica, em agonia.

E naquele tempo, em que não havia assim tanto barulho na rua, todos deram por isso. A minha avó, sentada na sala, janelas abertas de para em par, levantou-se num salto, acorreu à varanda e, dissimulada pela folhagem da buganvília, viu lá em baixo, na rua, uma Maria Frederica desnuda, envergando apenas o biquíni de missangas, uma Maria Frederica que gritava, chorando, "Margaret, margaret, estou cornuda! Estou cornuuuuuuuda, Margaret", e a minha avó, camuflada pelas ramagens frondosas, perscrutando a presença de eventuais testemunhas, dizia-lhe de dentro do arvoredo:

- “Oh filha, não digas essas coisas na rua, olha o escândalo, entra, entra, vem para dentro!”

Mas a Maria Frederica não entrava, a Maria Frederica continuava na rua a chorar e a perguntar aos céus por que razão aquilo lhe estava a acontecer, como podia ser que ela de manhã fosse apenas a Maria Frederica, e que, de um momento para o outro tivesse ficado assim, cornuda. Como é que isso podia acontecer a uma pessoa?
Claro que de vez em quando a Maria Frederica interrompia o seu drama para perguntar, muito séria, lá de baixo cá para cima, para a minha avó:

- “Oh Margaret, tenho a pintura borrada?”

E a minha avó, sempre escondida pelas folhas, dava instruções à criada para descer com um abafo, que a menina, coitadinha, devia estar com frio. E a criada lá foi, com um xaile, um xaile que a Maria Frederica pôs pelas costas mas que logo aproveitou para dar mais ênfase à sua personagem, abrindo os braços como um morcego, chorando lá de baixo cá para cima:

- Estou cornuuuuuda, Margaret, estou cornuuuda!

E a minha avó, dizendo lá de cima cá para baixo,

- "Oh filha tapa-te, oh filha, entra!"

Até que, depois de minutos que mais pareceram longas horas, a Maria Frederica entrou em casa directamente para o quarto, atirando-se teatralmente para cima da cama, por forma a recompor-se daquela terrível manhã de praia, a manhã em que ficou cornuda.

Logo aconteceu que, nesse dia à tarde, a minha avó teve as suas visitas do costume, as amigas da igreja, aquelas que vinham com as suas carteirinhas quadradas e rígidas, as carteirinhas que pousavam no colo qual escudo protector, as suas saias dez centímetros abaixo dos joelhos, as que se sentavam muito direitas e com os joelhos muito juntos e com as pernas num ângulo perfeito de trinta e oito graus, as que apenas usavam camiseiros de decote redondo e rente ao pescoço, as que iam esticando a saia para baixo a cada par de minutos, as que usavam o cabelo armado em volta da cabeça, como uma auréola.
Foi nessa altura que a prima Maria Frederica, refeita dos terríveis acontecimentos da manhã, resolveu fazer companhia às senhoras, sentia-se mais calma, tinha dormido sobre o assunto e tinha concluído que não se podia deixar levar por ideias retrógradas e tinha de ser ainda mais liberal. Entrou então na sala, escolheu para se sentar um cadeirão de orelhas de couro castanho, de onde se deixou escorregar, esticando assim as suas pernas morenas e longuíssimas, e enquanto as senhoras discutiam os detalhes da quermesse e as idas ao patronato para organizar a ajuda aos seus próprios pobrezinhos, a prima Maria Frederica, interrompia para dizer:

- “Oh Margaret, agora que o João tem outro e que tem de dividir atenções, o que eu queria era um mordomo que pensasse por mim.”

Oh Maria Frederica, dizia a minha avó, agora um mordomo, olha, bebe antes uma xícara de chá. Xícara essa que se afanava a servir-lhe, não fosse a Maria Frederica sair-se com outra frase daquelas... e a prima Maria Frederica, perdida nos seus pensamentos, ia interrompendo de quando em vez, até à estocada final.

-“Não, Margaret... o que eu queria mesmo, mesmo, mesmo, era uma cama redonda!”

- “Oh Maria Frederica, que disparate, uma cama redonda!? Mas para que querias tu uma cama redonda, que nem deve dar jeito nenhum para fazer?”

- “Oh Margaret, então para que havia de ser?! E abrindo muito os seus olhos lânguidos, fixando todas e cada uma das senhoras, explicou calmamente:

“- Então... para cabermos lá todas!



23 comentários:

  1. "Estou cornuda!" :DDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDD



    Conheço uma senhora que diz a quem quiser ouvir que não se importa nada que o marido faça umas escapadinhas. "É da maneira que não me chateia no quarto e sempre vou recebendo uns presentes. Ainda na semana passada me deu estes brincos, para ver se eu não percebo porque é que ele anda a chegar tão tarde e a cheirar a mulher".

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  2. Óptimo como sempre.
    Luciana

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  3. Consegui parar de rir agora. Excelente! Peço-te: escreve um livro porque estas estórias são preciosas.

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  4. O mordomo ia dar-lhe mais jeito que a cama...

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    1. Não, o mordomo ia dar-lhe jeito NA cama..

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  5. Ora aí está uma mulher que lida bem com o tempo livre, a Maria Frederica, e que sabe converter perdas em ganhos!

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  6. E aqui se nota a "classe" da Maria Francisca. Pois que num momento de agonia, de profunda humilhação e desespero, almeja por um mordomo onde outras cintentar-se-iam com um canalizador ou mesmo um padeiro :)

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  7. Gostei tanto, Palmier. E imaginar uma curta do argumento, também não ia nada mal ;)

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  8. Estava a precisar de uma história assim para rir a bom rir.

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  9. Bom, muito bom Palmier
    ...este comportamento deve poder ser explicado pela Psicologia, deve haver algum termo correcto para isto.....

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  10. A prima Maria Frederica é uma maravilha. Adorei.

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  11. Parafilia histriónica, como é óbvio.

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    1. Ui... com um nome tão assustador, deve ser uma coisa muito grave... :D

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  12. Doce Palmer,
    A estória é engraçada. Mas é a forma como a conta que cativa.
    Boa noite,
    Outro Ente.

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  13. Que bem escrito!
    Obrigada.

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  14. Maria Frederica, o nome acenta-te que nem uma luva :)

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  15. Oh Palmier, adoro estas estórias, muito bem escrito. Queremos mais! Abraços.

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