sexta-feira, 28 de junho de 2013

Não me interessa nada essa coisa das comidas

Fico sempre muito intrigada quando oiço as pessoas a descrever ingredientes, sabores, pratos de restaurantes, coisas aparentemente tão boas, que justificam horas e horas de relatos. A mim, qualquer coisinha me serve, há coisas de que gosto mais, outras de que gosto menos. Das que gosto mais como mais um bocadinho, das que gosto menos como menos um bocadinho. Nunca me lembro de um sítio, nem de uma conversa, nem de uma pessoa pelos pratos que comi, aliás, se for olhar para trás, acho que desde que sou adulta, não me lembro de nada do que comi. Estou em crer que me estou a transformar na minha avó. Também já tempero o arroz com vinagre como ela fazia. Um dia destes, fotografo o meu arroz com vinagre para pôr no Instagram. Vocês haviam de gostar de ver o meu arroz com vinagre. É um arroz muito bonito e cheira muito a vinagre. Só me lembro de coisas muito antigas, coisas cozinhadas pela Lúcia, os croquetes da Lúcia, os ovos estrelados da Lúcia, as fatias recheadas da Lúcia, a salada Russa da Lúcia, as sardinhas que a Lúcia assava lá em baixo, no fundo do jardim, num fogareiro que ela acendia com um abanico e de onde saltavam fagulhas, e a que depois tirava as espinhas. Isso era só no Verão, claro está, depois de voltarmos da praia. Como a minha avó não conduzia, íamos apanhar a camioneta à avenida, eu levava uma t-shirt por cima do fato-de-banho, um balde e umas havaianas, quando ainda se podia dizer que as havaianas faziam muito mal aos pés. Digo-vos que não era um kit nada glamouroso. Ficávamos sempre nos toldos verdes, aqueles do lado esquerdo de quem entra na praia e, como chegávamos cedo, na camioneta das 10h05, a minha avó escolhia o último da correnteza. Era o melhor porque tinha mais sombra. Esses toldos eram muito bons porque a estrutura era em ferro e dava para dar cambalhotas. Mal chegávamos, a minha avó besuntava-me de Delial, cheirava mesmo bem o Delial, ainda hoje eu, que não gosto nada de cheiros, gosto muito do cheiro do Delial. Era capaz de snifar Delial durante um dia inteiro. Na praia tomava um banho, comia um gelado, tomava outro banho e, se estivesse muito mas muito calor, tomava um terceiro. À uma hora, estávamos na paragem, a minha avó sentava-me no muro de pedra e, com a toalha, sacudia-me as pernas até ao último grão de areia, a seguir punha-me pó-de-talco, era um pó-de-talco com um frasco branco com letras verdes, acho que era da Lauroderme. Também cheirava muito bem o pó-de-talco e a pele ficava tão lisinha. É uma pena que já não se possa pôr pó-de-talco nas crianças, não há sensação melhor. Quando chegávamos a casa tomava banho de mangueira, era a minha avó que ligava a mangueira e eu, à sombra da árvore das anonas, esperava pela primeira água, que vinha quente, quente, às vezes até queimava, o pior era depois, quando aquela água que tinha aquecido ao sol, dentro da mangueira, se gastava e, então,  ui, aí a água vinha gelada, gelada. Quando subíamos, já eu ia lavadinha, sentava-me lá fora, na varanda que foi construída à volta da bungavília que a minha avó plantou e que nascia lá em baixo, no consultório, atravessava o tecto, subia até ao telhado e se espraiava por cima da varanda. E aí sentada, ao fresquinho, perguntava à Lúcia:
- O que é o almoço?
- Cascas de tremoço.
Era a resposta invariável.
Ainda hoje, sempre que como um croquete, estou à espera de encontrar o sabor dos croquetes da Lúcia. Nunca aconteceu. Mas estes são os sabores e os cheiros que estão na minha memória e os únicos suficientemente importantes para falar. Já a bungavilia continua lá, para quem se quiser lembrar deste tempo que já passou.

21 comentários:

  1. O meu toldo era do lado direito, parece que o lado esquerdo era pouco recomendável, a mãe punha uma toalha na varanda quando queria que saíssemos da praia para almoçar, não havia tms, às vezes as criadas desciam à praia carregadas com cestas cheias de feijão frade com atum ou salada russa, à tarde fazíamos corridas de bicicleta, havia uma descida bastante acentuada, nunca ninguém caiu nela, nunca percebi como, também havia uma mangueira, as noites acabavam a tocar às campainhas dos vizinhos e fugir em grandes gargalhadas, um deles tinha um badalo, fazia dlim dlão, o caseiro corria atrás de nós, nunca nos apanhou, não sei nada disso de croquetes, lembro-me de espigas de milho e cestas de tortas vindas directamente da praça de Cascais, eram umas ricas tortas, até hoje não provei nenhuma melhor, talvez as bolachas de manteiga da quinta do saloio se lhe comparassem.

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  2. Bonito texto. Gostei muito.
    Um BFS.

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    1. Mas não dispensa a receita do arroz de vinagre porque o meu é uma desgraça e eu sou maluco por arroz avinagrado. Cozo o arroz e depois de pronto deito vinagre lá para dentro.
      Até já estou a salivar. :)

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    2. :D eu também só o tempero depois :)

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  3. :')....Não tenho grandes lembranças de idas á praia... mas os Avós, Nandufe e a quinta das galinhas, as silvas, as amoras e a balsa no rio, são memórias que ...:')

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  4. Tenho também alguma nostalgia nos tempos em que eu ia passar férias na casa dos meus avós no Verão. Eles viviam numa serra no interior do nosso país. Dedicavam-se à agricultura e à pastorícia. E se há coisa que tenho saudades era dos lanches que a minha avó preparava para quando ia com ela levar as vacas para o monte: fruta e pão com tulicreme, tudo dentro de um saco de linho. Depois do seu desaparecimento nunca mais comi tulicreme, tornei-me adepta da nutella, porque sei que o tulicreme que eu comprar não terá aquele sabor a montanha e o cheiro a eucalipto, a resina de pinheiro bravo e carqueja...

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  5. lagos? eu uso pó de talco. para tirar a areia dos meus filhos...

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    1. Yap :)! Eu nunca usei com os meus porque ouvi dizer que era perigoso, que o pó é muito fininho, que as crianças respiram aquilo, blá, blá, blá...

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  6. O que eu gostei deste post Palmier. Senti a verdadeira essência do mirone a queimar-me as veias. Por momentos acreditei que vos observei enquanto esperavam o autocarro, que mesmo antes de ele partir subi e me sentei na última fila. Na praia, num todo mais escondido, vi-te tomar banho. Depois voltei no mesmo autocarro. Agora estou ali parado, a tentar conter a vontade de espreitar para dentro do muro.
    Vou pôr-te na lista dos blogs que espreito (venho cá há muito tempo, desde o tempo que ainda não tinha blog), dás-me essa honra?
    Mirone

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  7. Com este texto (maravilhoso, por sinal), não me lembrei só das férias com a minha avó, lembrei-me de todos os dias, porque durante anos tive a minha avó todos os dias. Também me lembro de banhos de mangueira, mas dos sabores do Verão só me consigo lembrar das talhadas de melancia fresca, que pedíamos para comer em dentadas alarves, com o sumo a escorrer pelo queixo... A minha avó partiu o Verão passado, e tenho saudades dela todos os dias, porque era todos os dias que a tinha...

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  8. Tão bom, lembranças! O nosso património de afectos… as nossas memórias, aquilo que fica mesmo quando alguns outros aspectos falham. Também tenho a grande sorte de ter tão boas memórias de infância e só espero conseguir construir boas memórias para os meus filhos!
    Adorei o texto.

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  9. Adoro cá vir, mas este post foi direto ao meu coração, tb eu tive uma avó parecida com a tua, uma avó sempre presente a viver na casa ao lado da minha, são uma felicidade essas memórias, espero que as minhas filhas um dia tb as recordem, elas tb com uma avó presente mas acima de tudo com uma mãe, sim aqui sou eu que lhes dou banhos de mangueira descritos tal e qual os teus, que as levo á praia, e não só, que lhes faço os melhores pratos do mundo, pelo menos é o que elas dizem, espero um dia tb deixar memórias assim aos netos, só assim a vida faz sentido.

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  10. Assim de repente, recordei os banhos de mangueira na varanda de casa dos meus pais que fica a 200m dessa bungavilia, tambem recordo os intervalos das aulas do ciclo preparatório, encostada a nesse muro (eu sou uma pessoa muito antiga). Adorei :)
    Maria João

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  11. Os posts da Palmier ou me fazem rir à gargalhada ou me deixam com um sorriso nostálgico, como foi o caso deste. As férias com os meus avós (e tios) também eram as melhores. Era tudo tão fácil e bom. Saudades.

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