segunda-feira, 20 de julho de 2015

Outros tempos - A santa e o pecado

A minha avó fumava. Pior, a minha avó fumava como uma adolescente, fazia-o às escondidas e muito depressa, não fosse alguém apanhá-la com um cigarro na mão. Fumava o seu cigarro quase todo de uma vez, a cinza ficava enorme e retorcida, mas nunca chegava a cair, era deitada in extremis para o cinzeiro e daí era levada muito rapidamente para o caixote do lixo, porque aquele baton cor-de-rosa que ficava marcado no filtro era por demais incriminador. Claro que, sendo esta uma prática pecaminosa, comprar cigarros tornava-se numa tarefa quase impossível, já que, por um lado a minha avó não saia muito de casa, que já se sabe que uma senhora não anda assim sozinha pela rua, por outro, porque mesmo que se aventurasse a sair sozinha, entrar numa tabacaria para comprar um maço de cigarros estava completamente fora de questão. Assim sendo, restava-lhe a Vitória, uma empregada mais nova mas extremamente confiável a quem ela dava o dinheiro e dizia:
- Vai ali comprar um maço de Ritz para a menina.
A menina era a minha mãe, que lhe servia de testa de ferro nestes difíceis assuntos do fumo. Às vezes, quando não encontrava forma de mandar a Vitória na sua missão ultra-secreta e os Ritz se acabavam, a minha avó dizia à minha mãe:
- Dá-me lá uma coisa dessas para ver a que sabe. E então pegava no cigarro que a minha mãe lhe dava, fumava-o num ápice e, quando chegava ao fim colocava-lhe invariavelmente a mesma questão:
- Tu gostas mesmo disto? 
Claro que a minha avó não fumava em frente ao meu avô, afinal tinha uma reputação a manter. A sorte era que o meu avô tinha por hábito de operar os doentes depois do jantar. Fazia as consultas durante o dia, vinha jantar, repousava um pouco, bebia o seu Brandy aquecido na lamparina, via a televisão e descia para a para a sala de operações. Meia hora antes pegava no telefone, ligava lá para baixo e dizia invariavelmente a mesma coisa:
- Dá um injecção de Demerol e Fenergan ao doente.
Era nesse momento que começava a contagem decrescente e assim que o meu avô se levantava, estava iniciada a hora de fumo, hora de adolescente, porque a sessão de fumo era feita à janela do quarto, sendo a aspiração feita dentro das quatro paredes, não fosse dar-se o caso de alguém na rua ver a brasa incandescente do cigarro, e a expiração feita para a rua, não fosse o ar dar sinais de que alguém estivera a fumar dentro do quarto. Em dias de calmaria a proeza do cigarro mostrava-se mais facilitada já que, em vez de se retirar para o quarto, a minha avó ia antes para a varanda, onde, encostada no parapeito e envolta pelos ramos da buganvília, podia fumar sem grandes cautelas.
Acontece que a hora de fumo coincidia com a hora de bebedeira do Romeu Embrulho, um homem da estiva, que começava a beber assim que acabava de descarregar o peixe do fundo das traineiras e só parava quando se deitava na cama. Por essa hora o Romeu Embrulho cambaleava no largo para o qual dava a janela do quarto e seguia rodeando a casa e passando pela buganvília. Seguia não será o termo apropriado porque havia paragens no meio do largo ou debaixo da buganvília, consoante a minha avó se encontrasse no quarto ou na varanda, paragens que o Romeu dedicava à oração. Na sua bebedeira o Romeu idolatrava duas Santas, a Nossa Senhora de Fátima em segundo lugar e, em primeiro lugar, bem destacada, a minha avó. Perscrutava atentamente a janela do quarto, rodeava a buganvília e se sentisse sinais da sua santa erguia os braços, ajoelhava no meio da rua, fazendo assim parar o trânsito, e iniciava a sua fervorosa reza: 
- Senhora cheia de graça que estás aí no alto, dá-me o perdão, roga por mim, pecador, pede por mim a Deus, minha Senhora, minha santinha, dá-me a tua benção...
E a minha avó, incomodada, dizia lá de cima, de forma ríspida e altiva:
- Vai-te embora daqui, Romeu. Estás embriagado.
E era assim, sem quaisquer remorsos, que a minha santa avó, decidida que estava a praticar o pecado do fumo, despachava o seu devoto Romeu.



31 comentários:

  1. Coitado...
    ...era um Romeu sem Julieta...

    LOL

    :)

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  2. A tua família é demais Palmy! :D

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  3. Ahahahahahahahahahahah SG Ritz? Ou era SG (ventil, filtro ou gigante) ou era Ritz. Ai que a menina não percebe nada disto.

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    1. Pois era! :D fui ver e era só Ritz. Eram estes:

      http://obviousmag.org/archives/uploads/2006/060213_ritz.jpg

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  4. Oh pá... Não tenho mesmo pachorra para estas histórinhas. Não entendo porque é que isto interessa a alguém!

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    1. Oh pá... Não tenho mesmo pachorra para estes comentários. Não entendo porque é que isto interessa a alguém!

      (já lhe ocorreu que me pode interessar a mim? É que, em parecendo que não, o o blog ainda é meu...)

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    2. Eu, que estou do lado de fora, explico-lhe, caro Anónimo: isto interessa aos que gostam de ler textos bem escritos, aos que gostam de relembrar a vida de outros tempos, até aos que têm algo de "voyeur" da vida alheia (temos todos um pouco, não é?).

      O que eu não entendo é o que está aqui a fazer, com tanta falta de pachorra. :-D

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    3. Claro que sim Repare: o blog é seu, o comentário é meu! Ui ui que difícil perceber. Além disso, a sua escrita é sofrível. Aguardo resposta do meu familiar (tenho muita pachorra para isso).

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    4. Boa! Excelente conclusão, "Lili Caneças Style"!

      (Só não percebo por que razão perde tempo com este blog...)

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    5. Ah Ah Ah Ah Ah
      Sofrível? A Palmier tem aqui uns anónimos tão engraçados!

      Não ligue Palmy! Adoro as suas estórias do antigamente :)

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    6. Já eu, acho que as histórias da família da Palmier são o ponto alto deste blogue. A par da grande obra, é claro... sem esquecer a Cutxi... e o Canis!!
      Gosto tudo daqui, principalmente a qualidade da escrita, cabelo incluído, excluindo os casacos e para não parecer uma Palmierette doida, tenho 1 crítica a fazer: escreve pouco sobre a família!
      (e o anónimo "não entende"... é isto mesmo. Não entende)

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    7. Ai... não gosta tem bom remédio. Ande para a frente que atrás vem gente. Gente que muito aprecia ler estas histórias. E a mestria com que esta senhora as conta, oh oh!

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  5. Anónima, obrigada pelo comentário. Não o vou publicar porque achei que ninguém iria reconhecer o Romeu :) pelo que lhe mudei agora o apelido (que nem sei se era apelido ou se o chamavam assim por alguma outra razão) :))))

    (esse outro que refere, era um que andava vestido de Cristo?)

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  6. Nao o o cristo era outra personagem tambem da cidade.O palmeira era um velhote de bengala que andava sempre a pedir no cafe "abrigo" e quando a filarmonica tocava ele andava sempre a frente a comandar. O romeu todas as pessoas o conheciam por aquele nome era uma pessoa sem familia que vivia de caridade no armazem das redes pertencente à estiva

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    1. Esse não me lembro, e eu também adorava ir atrás da filarmónica! :DDDDDDDDDDDD

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  7. O seu avozinho devia ter sinusite... O meu pai , ou era arraçado em perdigueiro ou eu fumava uma marca muito reles, porque lhe sentia o cheiro 4 ou 5 horas depois, mesmo com a dentuça lavada e tudo.
    Fumar ás escondidas tem que se lhe diga. O Romeu acatava, vá lá... o meu irmão mais novo era um "chibo" o malandro :) :) :)

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  8. Adorei este texto.....Transportou-me para aquela época....... Parabéns.

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  9. Adorei o texto. A minha avó também fumava, no alto da sua altiva elegância loura e de olhos azuis (que não calhou a nenhum de nós, mais novos - a elegância e o gosto pelo tabaco) e o teu texto fez-me lembrar algumas histórias desses tempos :)

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  10. Como fumadora de Ritz que fui, chocou-me imenso a colagem ao SG, detalhe que arruína totalmente uma história .
    Já vi que houve mais alguém que também reagiu.
    ( nem calcula a importância destes detalhes !!!!!!)

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