A Senhora Dona Feliciana veste de preto integral, que desde
que o marido lhe morreu a cor da roupa condiz-lhe com o coração, e isto apesar
da irmã mais nova, má como as cobras, a enxovalhar diariamente, perguntando-lhe
de forma insolente porque não veste outra roupa. Ora, porque esta é a minha
roupa, não é verdade senhora doutora?, da cor do meu coração! Diz a Dona
Feliciana convicta. A Dona Feliciana vive há sessenta anos numa casa arrendada
que detesta. Detesta a casa mas, mais ainda, detesta a Senhoria, ai senhora doutora, nem imagina, aquela mulher é uma ci-ga-na, e diz isto com verdadeiro
ódio, sibilando cada palavra, quase consigo ver a língua bifurcada de cada vez
que fala na senhoria, faz-me a vida
negra, da cor do meu coração, só quer saber de fazer obras no primeiro andar e
no meu, nada! Na-di-nha! E desde que lá puseram aquele restaurante por baixo,
tenho a casa a tresandar a refogado desde as nove da manhã! Até se me esqueceu
de como é que se cozinha, logo eu que fazia umas comidinhas tão boas. E com
olhos sonhadores relembra as comidinhas que fazia mas de que já não se lembra. Mas, Dona Feliciana, porque não compra uma casinha, ou, se não quiser gastar
muito dinheiro, arrenda… e ela afasta
essa ideia com a mão, como se fosse uma mosca, nã, nã… já não vale a pena, já
não vale a pena…. se eu pudesse, diz muito séria, com uma expressão de devaneio
no rosto emoldurado pelo cabelo de plix roxo, tinha era uma televisão no
quarto. Mas, Dona Feliciana, compre uma televisão! Ah, senhora doutora… não
cabe! Sabe lá, eu para passar daqui para aqui, e faz gestos com as mãos
explicando a disposição dos móveis, tenho de saltar por cima da cama! Mas Dona
Feliciana, agora há umas televisões fininhas, que se penduram na parede, como
um quadro. Se quiser arranjamos alguém para lhe tratar disso. Ah, senhora
doutora, não cabe, não cabe… e vê-se a expressão desconfiada com a ideia de uma
televisão fininha que parece um quadro.
A Dona Feliciana que sempre fez contas à vida e nunca gastou
um tostão a mais, chegou aos oitenta e nove anos com um bom pé-de-meia, mas
esse pé-de-meia, ao invés de lhe proporcionar bem-estar e alegria, causa-lhe as
maiores apoquentações. Pior, é um drama, um sofrimento, uma angústia! É que a Dona Feliciana vive apavorada com as meninas
dos bancos. Que a querem enganar! Ora é a do banco verde que lhe diz que havia
de pôr lá o dinheiro, dê-me lá uma ajudinha, Dona Feliciana, que a gente aqui precisa mais do
que os outros, ora é a do banco vermelho que lhe telefona a dizer que ela já
não aparece há muito tempo, venha cá fazer-nos uma visita, e a Dona Feliciana,
que enquanto o marido era vivo nunca tratou destas coisas, veste-se a correr
para ir imediatamente prestar a visita para que foi requisitada, vem pela rua
fora, esbaforida, entra no banco vermelho às escondidas da menina do banco
verde, do outro lado da rua, e no banco verde
às escondidas da menina do banco vermelho, não vão as meninas dar conta
da infidelidade da Dona Feliciana, que aí é que estava o caldo entornado e lhe davam sumiço ao
dinheiro. Cada vez que recebe uma carta do banco é uma agonia, é desta que me
levaram tudo, vem com o papel na sua pastinha preta para mostrar. Não Dona
Feliciana, esteja descansada, não é nada, está tudo bem, ai senhora doutora,
que grande aflição! A minha vida é um verdadeiro terror, um terror!, diz a Dona Feliciana olhando para o extracto bancário sem nada perceber, parece que estou
dentro de uma teia de aranha, feita por duas aranhas grandes e pretas e não
consigo de lá sair!
Pobreza intrínseca, para não dizer palavrões...
ResponderEliminarEstá mesmo. Numa teia que ela, vestida de preto como as aranhas, teceu.
ResponderEliminarque delícia de texto.
ResponderEliminarBela história,... eu tenho uma Dona Feliciana dentro de mim, mas só que esta, além de se assustar com o banco também se assusta com os exames médicos. Sempre que entro num consultório para os mostrar fico à espera que diga: "Bom,...errr. Pois,... isto aqui, tem 24h de vida.." Juro que vejo o médico dizer isto, só depois é que processo que só esteve a anuir, a comparar valores e a ver a banalidade eu ser "normal". Mas morro sempre um bocadinho por dentro, vejo já o meu funeral, começo a pensar o que dou a quem, coisas para pôr em ordem. São os 5 segundos mais longos da minha vida.
ResponderEliminarAiii como eu percebo a Dona Feliciana...
Doce Palmier,
ResponderEliminarSerá caso para dizer que tem o dinheiro da cor do seu coração.
Um beijo,
Outro Ente.
Pobre D. Feliciana... Pelo menos que cometesse a "loucura" de comprar a televisão fininha, para lhe alegrar um bocadinho os dias da cor do seu coração...
ResponderEliminar