sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O ambiente era, como é sempre, religioso

Na cabeceira da mesa o Presidente da Assembleia-Geral revirava os papéis com movimentos lentos, arrastados, de camaleão, as suas mãos preênseis tacteavam as folhas soltas à procura do bloco de notas, tudo isto num silêncio sepulcral, um silêncio que oprimia a Senhora Dona Teresina, sentada à direita do Senhor Doutor, que, apesar de ser completamente surda, olhava muito direita para todos os lados, para não deixar passar em branco alguma palavra inexistente, ao mesmo tempo que, não fosse o diabo tecê-las, abraçava com toda a força a sua enorme pasta de executiva onde transporta apenas uma caneta, a caneta com que vai assinar o Livro de Presenças, o momento alto da assembleia e que marca a divisão do tempo da Senhora Dona Teresina em AA (antes da assinatura) e DA (depois da assinatura), uma vez que o seu estado de espírito é extremamente influenciado por este - para alguns, simples - acto; Antes da assinatura é dominada pela ansiedade e pelo nervosismo, o semblante carregado e as mãos trémulas, depois, no pós-assinatura, aflora-se-lhe um sorriso à face, um sorriso de satisfação, de vitória e de objectivo cumprido, um sorriso que se lhe espraia e alarga até aos olhos quando, depois de todos assinarmos, pede de novo o livro de presenças para, como se questionasse o espelho mágico, poder olhar com deleite a suas letras alinhadas e dizer aliviada: "a minha é a mais bonita!". O problema é que a Senhora Dona Teresina é, como já disse, surda e o Senhor Presidente, devido a um problema nas cordas vocais está praticamente mudo, daí que a reunião tenha sido deveras sui generis, já que poucos à volta daquela mesa, apesar dos pescoços esticados e das orelhas arrebitadas, conseguiram descortinar uma palavra do que foi sussurrado. Apesar disso, no final, eu, que desta feita me tinha mantido transparente aos olhos do Senhor Presidente devido àquele quid pro quo na convocatória, que ele insistia que havia de ser feita ao abrigo do artigo tal, e eu, - uma mulher, vejam só! Qualquer dia até já fumam! Onde é que isto vai parar! Não há-de o mundo estar como está! -, insistia que não, que havia de ser ao abrigo de um outro artigo, fui brindada com a clássica pergunta/afirmação, a deixa preferida da pessoa em causa, que depois de ter poupado as cordas vocais voz nos pontos da ordem do dia com uma sucessão de sussurros, disse:
- Então, Xotôra, está com muito boa cara… e levantando pela primeira vez o tom de voz, por forma a criar um certo impacto, voltou a esgrimir a frase assassina como uma espada a cortar o ar – Está mais gorda, não está?
E a pessoa, que já sabe que vai ouvir aquilo, já está preparada e responde jovial:
- Ainda bem, Xotôr, ainda bem... se estou com boa cara então é boa notícia, não é?
E o Xotôr, mudando de semblante perante a falta de resultado da sua maldadezinha de estimação, regressa ao ataque, desta feita empunhando um revólver imaginário, raivoso e rubicundo, e voltando a subir o tom de voz, esforçando ao máximo as suas cordas vocais enfermas, exclama perante o espanto e o constrangimento de todos:
. Oh Xotôra… mas está mesmo com boa cara… diga lá a verdade... e antes de colocar a sua pertinente questão, mostrou num sorriso de escárnio os seus dentes certinhos, certinhos , daqueles que só uma boa dentadura postiça pode providenciar, olhou em volta por cima dos óculos, assegurando-se que a atenção geral estava concentrada nas suas doutas palavras, e disparou o tiro certeiro:
- Já fez uma operaçãozita, não já?


20 comentários:

  1. Se não fosse real, seria cómico. Abençoada (isto para manter a linha do religioso) Palmy que encara as coisas com humor.

    ResponderEliminar
  2. e a sôdona Teresina ouviu?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Claro que não, a Sôdona Teresina só quer saber da sua bela assinatura :D

      Eliminar
  3. Os seus textos são uma delícia. Se escrevesse um livro com uma sucessão de relatos de experiências, memórias e observações, comprava-o.

    ResponderEliminar
  4. Então e o Bufoníado será apenas surdo ou também cegueta ?

    ResponderEliminar
  5. Que figura!!!!! (triste)!!!

    ResponderEliminar
  6. <3

    Para o ano, quando o Presidente te brindar com esses mimos, responde-lhe qualquer coisa como "sinto-me lindamente, com uma saúde de ferro, pronta, como o Xotôr, para cá andar até aos 97. São 97 ou 98, recorde-me lá". Parece que não mas o ego deles também se abala, e bem mais do que pensamos.


    (Ontem menti na idade, para mais, e nem imaginas os "aaaahhhh, não acredito, parece bem mais nova", que ouvi, dois deles vindos de senhoras - que tendem a ser mais criticas).

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Mi... não vale a pena... o melhor é mesmo rir dos disparates :)

      Eliminar
  7. Com os xotôres desta vida o melhor é mesmo proceder de forma discreta e concordante abanando com a cabeça de um lado para o outro enquanto se diz, pois sim xotôr, medidas desesperadas podem levar a situações desesperantes e não vale a pena! (convém que o xôtor seja meio cegueta e que as donas Teresinhas, não vejam porque senão é certo que lhe vão contar)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Normalmente não me contenho... mas tendo em conta a idade desta pessoa em concreto... enfim, não vale a pena... :)

      Eliminar
  8. Lindo o nome da Senhora Dona
    :)

    ResponderEliminar