quinta-feira, 18 de maio de 2017

A Barbearia

A barbearia que começou os seus dias destinada a ser uma barbearia chique, uma coisa com bar ao fundo e manicure, foi, durante décadas, testemunha de um ódio visceral entre os seus dois sócios, o Senhor Basílio e o Senhor Manuel, um ódio que se prolongou por mais de quarenta anos, uma malquerença mútua que era palpável e que adensava o ar, deixando todos os seus clientes em alerta, tendo em conta a quantidade de objectos cortantes que por ali havia. O dito ódio, que se reflectiu na total ausência de limpeza e manutenção, deixou a barbearia parada no dia da grande zanga, os cortinados encardidos, as cadeiras desconjuntadas e os vários centímetros de pó que cobriam as capas das revista dos anos setenta eram prova mais do que evidente do tempo que aquela luta surda já levava. A postura dos dois barbeiros fazia o resto. 
O Senhor Basílio, o barbeiro dos elementos masculinos da minha família - não por escolha mas porque calhou ser ele a atendê-los da primeira vez que lá foram e a partir daí o lado da barricada estava automaticamente escolhido -, é um homem franzino, na casa dos setenta, cinzento de raiva, corpo hirto e ressequido, bata bege a abotoar no ombro, cabelo pintado de preto, bigode grisalho inteiriço e farfalhudo - um bigode que lhe ocupa metade da cara magra e afilada - vivia em tensão, movimentos bruscos e semblante colérico, a vida dele não era cortar cabelos, a vida dele era, isso sim, estar ali, a travar a sua guerra com o Senhor Manuel.
Acontece que, quando as facções beligerantes já pareciam ter desistido e o empate estava prestes a ser declarado, chegou o dia em que o Senhor Basílio acabou por ganhar a batalha final, já que o Senhor Manuel, apesar de ter dado luta, não sobreviveu às más energias que ali circulavam, libertando finalmente o Senhor Basílio para a vida. E o Senhor Basílio, num gesto de rebeldia, não perdeu tempo e ligou de imediato o seu destino a um novo barbeiro, um jovem de óculos de massa, braços tatuados e cabelo em poupa alta e lateral, que remodelou a barbearia por forma a retomar o brilho de outrora, lustres de vidrinhos, revistas de design sobre a mesa, decoração moderno-retro-industrial-vintage em preto, e o Senhor Basílio, cujo corpo já se habituou àquela postura rígida de autómato vai para anos, lá está, envergando, orgulhoso da vitória, a nova farda da barbearia: camisa aos quadradinhos, gravata de xadrez, colete de veludo e o seu bigode fora de moda agora elevado à categoria de moustache, num look totalmente hipster.

Quase consigo ouvir o risinho de escárnio do senhor Manuel, lá no além…



15 comentários:

  1. Super-genuínas essas barbearias retro-coiso- vintage. :DDD

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    1. (tenho aqui mixed-feelings, porque pior do que estava era impossível, uma pessoa ficava ali sem se mexer, tal era o grau de sujidade, mas, depois... enfim... sim, passou para o estatuto de "super-genuína!... :DDDDDDDDDD)

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    2. O meu receio, se fosse homem, era se não sairia dessas barbearias modernas, de poupa, piercing e tatuagem.

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    3. Foi o que disse ontem ao meu filho: cautela que ainda vens de lá com uma crista, ou assim... :DDDDDDDDDDDDD

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    4. e pequena cutxi já não foi vítima de cristas? ora! :-)

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    5. Ah, mas essa crista foi a pedido. Neste caso havia a hipótese dele ser surpreendido com uma! :D

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  2. E eu gosto muito das suas histórias, principalmente as da avó e da tia ( julgo não me estar a enganar)

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  3. Isto é um re-post com um twist?

    (ia jurar que já tinha lido um post parecidíssimo!)

    Máxima

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    1. Já tinha escrito um post sobre a barbearia, mas, na altura, ainda não se tinha dado o desfecho final! :D

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    2. Agora já podes voltar a ser cliente!

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  4. Achei!!!!! :DDDDD

    http://palmierencoberto.blogspot.pt/2015/03/a-barbearia.html

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  5. Lembrei-me de um documentário, um de muitos, sobre as tribos da Amazónia. Neste em particular os jovens passavam por um ritual bastante doloroso em que eram picados por formigas. Uma daquelas cerimónias de passagem, que embora mude a forma, são comuns em todas as culturas, e que marcam a entrada na vida adulta. E ao ler a descrição da barbearia, pensei que ora aqui um ritual de passagem ao nível dos jovens índios, onde para se sair incólume dos perigos oriundos dos mil objectos cortantes e do tétano, é preciso saber lidar com os maus fígados dos barbeiros. Corajosos!

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