A
Maria Frederica era uma mulher linda, alta, exuberante, com um corpo elástico,
perfeito, cabelos escuros e compridos, boca cor-de-rosa de lábios cheios, maçãs
do rosto altas e marcadas, daquelas mulheres que até nós, mulheres, ficamos
embasbacadas a olhar, aquelas mulheres a quem se perdoa tudo, as que podem tudo,
que têm um íman, que são fortes e fracas ao mesmo tempo. Para além de linda, a
Maria Frederica era moderníssima. Enquanto todos as outras se passeavam de
fato-de-banho completo em tons de castanho, a prima Maria Frederica tinha uma
imensa colecção de biquínis coloridos, biquínis exclusivos desenhados pelo seu
marido, o João. O João também lhe desenhava as roupas, levava os tecidos à
modista, dava indicações sobre o corte adequado, as linhas, os botões,
fazia-lhe penteados e escolhia-lhe os acessórios com que ela deixava toda a
gente boquiaberta. O João, apesar de adorar a Maria Frederica, a sua boneca de
estimação, era bem sabido, também adorava homens. Aliás, perdia-se por eles.
E isso, como é óbvio, causava algumas tensões entre o casal.
Num
dos muitos dias de praia, daqueles em que a Maria Frederica levava os seus
biquínis e a as suas pestanas postiças para o areal, sempre arranjadíssima e
com maquilhagem completa, deitada em forma de esfinge do deserto sobre a sua
toalha, as coisas correram menos bem. Nesse dia a Maria Frederica deixou tudo
para trás e voltou para casa a pé, sozinha, e arrasada. Veio a chorar pelo
caminho fora, e, mal entrou na rua de casa da minha avó, começou a chamá-la lá
do fundo, desesperada:
-
"Margaret! Margaret!", gritava a Maria Frederica, em agonia.
E
naquele tempo, em que não havia assim tanto barulho na rua, todos deram por
isso. A minha avó, sentada na sala, janelas abertas de para em par, levantou-se
num salto, acorreu à varanda e, dissimulada pela folhagem da buganvília, viu lá
em baixo, na rua, uma Maria Frederica desnuda, envergando apenas o biquíni de
missangas, uma Maria Frederica que gritava, chorando, "Margaret, margaret,
estou cornuda! Estou cornuuuuuuuda, Margaret", e a minha avó, camuflada
pelas ramagens frondosas, perscrutando a presença de eventuais testemunhas,
dizia-lhe de dentro do arvoredo:
-
“Oh filha, não digas essas coisas na rua, olha o escândalo, entra, entra, vem para
dentro!”
Mas
a Maria Frederica não entrava, a Maria Frederica continuava na rua a chorar e a
perguntar aos céus por que razão aquilo lhe estava a acontecer, como podia ser
que ela de manhã fosse apenas a Maria Frederica, e que, de um momento para o
outro tivesse ficado assim, cornuda. Como é que isso podia acontecer a uma
pessoa?
Claro
que de vez em quando a Maria Frederica interrompia o seu drama para perguntar,
muito séria, lá de baixo cá para cima, para a minha avó:
-
“Oh Margaret, tenho a pintura borrada?”
E
a minha avó, sempre escondida pelas folhas, dava instruções à criada para
descer com um abafo, que a menina, coitadinha, devia estar com frio. E a criada
lá foi, com um xaile, um xaile que a Maria Frederica pôs pelas costas mas que
logo aproveitou para dar mais ênfase à sua personagem, abrindo os braços como
um morcego, chorando lá de baixo cá para cima:
-
Estou cornuuuuuda, Margaret, estou cornuuuda!
E
a minha avó, dizendo lá de cima cá para baixo,
-
"Oh filha tapa-te, oh filha, entra!"
Até
que, depois de minutos que mais pareceram longas horas, a Maria Frederica entrou
em casa directamente para o quarto, atirando-se teatralmente para cima da cama, por forma a recompor-se daquela terrível manhã de praia, a manhã em que ficou cornuda.
Logo
aconteceu que, nesse dia à tarde, a minha avó teve as suas visitas do costume,
as amigas da igreja, aquelas que vinham com as suas carteirinhas quadradas e
rígidas, as carteirinhas que pousavam no colo qual escudo protector, as suas
saias dez centímetros abaixo dos joelhos, as que se sentavam muito direitas e
com os joelhos muito juntos e com as pernas num ângulo perfeito de trinta e
oito graus, as que apenas usavam camiseiros de decote redondo e rente ao
pescoço, as que iam esticando a saia para baixo a cada par de minutos, as que
usavam o cabelo armado em volta da cabeça, como uma auréola.
Foi
nessa altura que a prima Maria Frederica, refeita dos terríveis acontecimentos
da manhã, resolveu fazer companhia às senhoras, sentia-se mais calma, tinha
dormido sobre o assunto e tinha concluído que não se podia deixar levar por
ideias retrógradas e tinha de ser ainda mais liberal. Entrou então na sala,
escolheu para se sentar um cadeirão de orelhas de couro castanho, de onde se
deixou escorregar, esticando assim as suas pernas morenas e longuíssimas, e
enquanto as senhoras discutiam os detalhes da quermesse e as idas ao patronato
para organizar a ajuda aos seus próprios pobrezinhos, a prima Maria Frederica,
interrompia para dizer:
-
“Oh Margaret, agora que o João tem outro e que tem de dividir atenções, o que
eu queria era um mordomo que pensasse por mim.”
Oh Maria Frederica, dizia a minha avó, agora
um mordomo, olha, bebe antes uma xícara de chá. Xícara essa que se afanava a
servir-lhe, não fosse a Maria Frederica sair-se com outra frase daquelas... e a
prima Maria Frederica, perdida nos seus pensamentos, ia interrompendo de quando
em vez, até à estocada final.
-“Não, Margaret... o que eu queria mesmo, mesmo, mesmo, era uma cama redonda!”
-
“Oh Maria Frederica, que disparate, uma cama redonda!? Mas para que querias tu
uma cama redonda, que nem deve dar jeito nenhum para fazer?”
-
“Oh Margaret, então para que havia de ser?! E abrindo muito os seus olhos
lânguidos, fixando todas e cada uma das senhoras, explicou calmamente:
“- Então... para cabermos lá todas!”