domingo, 5 de abril de 2015

Não sei bem explicar

Odeio perfumes, cheiros intensos, é mesmo uma coisa física, deixam-me mal disposta, agoniada, mesmo os mais frescos, passado pouco tempo, enjoam-me, arrepiam-me, quero fugir deles e eles ali, impregnados, sem darem tréguas. No entanto, são os cheiros que conseguem despertar em mim memórias mais antigas, como este que acabei de sentir ali, na Avenida, um cheiro abafado a maresia, que, numa milésima de segundo, me levou de volta àquele dia em que saímos de de barco, e que era preciso levar bidões de gasóleo, para encher o depósito, e depois pedir aos pescadores para nos levarem nuns barquinhos a nós, aos bidões e ao farnel, até ao barco, que nessa altura não havia marina e o barco estava ancorado no porto, a meio da ribeira de Bensafrim e depois fomos por ali fora, até que, ao fim do dia, acabámos na Ria de Alvor, já com o farnel depenado e o sol a baixar no horizonte, e aquele veleiro enorme, que ali esteve encalhado durante anos e anos, o veleiro de um belga ou francês, não me lembro bem, um velhote ermita, com umas barbas enormes e brancas, umas barbas todas embaraçadas pela água do mar, que aproveitou aquela maré cheia em particular para voltar a navegar. E nesse dia, enquanto eu comia um ovo cozido com uma mão, e uma fatia de pão seco com a outra, embuchada até não poder mais, que já não havia água para beber, o velhote puxava os cabos numas roldanas com artroses, que guinchavam aflitas, e a madeira do barco desabituada do movimento, estalava por todos os lados, e nós fomos atrás dele, em procissão, enquanto o veleiro fantasma saía finalmente da ria, e, no momento em que ele içou a vela grande, e se fez ao mar a sério, nós ficámos parados a vê-lo ir e batemos palmas durante muito tempo, até desaparecer lá longe, no mar alto. E nesse dia, o cheiro era este, o da maresia abafada.



10 comentários:

  1. Vá lá ao sítio do Pipoco repor o seu lugar, pois desapareceu da coluna da direita.

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    1. Mesmo!
      Adorei, cheirou-me aqui a maresia e se estou longe da costa...

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    2. Peço desculpa mas não vou publicar os comentários. Sei que este assunto deve ser deveras apaixonante mas, confesso, estou pouco interessada em discutir não-assuntos.

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  2. Há dias em tenho vontade de chorar por nada de especial. Hoje é um desses dias em que ando a choramingar pelos cantos. Foi balsâmico ler este texto, que de tão bonito me emocionou ao ponto de chorar os olhos até à nascente. O perfume das memórias é sempre mágico, rejuvenesce-nos e ajuda-nos a sorrir à melancolia que envolve todas as boas recordações.
    Boa Páscoa, Palmier. Um grande beijinho :)

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  3. Sôdona Palmier é da mesma terra que eu? ♥

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