sábado, 25 de abril de 2015

Desta vez também vou falar do 25 de Abril

Talvez tudo tenha começado na Primeira República, quando entraram de rompante, baionetas em punho, em casa da minha avó, tinha ela meia dúzia de anos, à procura do Senhor Ministro. Procuraram-no pela casa toda, abriram as portas com estrondo, tiraram roupas dos guarda-vestidos, reviraram tudo, até que, chegados à despensa e já desalentados com a falta de resultados, se puseram a espetar as baionetas nas sacas de tubérculos que estavam no chão, arrumadas a um canto, ao que a criada, pano da loiça na mão e queixo caído, ultrapassada pelos acontecimentos, lhes disse:
- Espetem, espetem! Pode ser que o Senhor Ministro esteja aí escondido. Dentro de uma batata.
Desde esse dia que a minha avó passou a ter horror à política. Dizia mesmo, sempre que se falava de política em geral ou de algum político em particular, a mesma frase: "tenho horror a essa gente".
No dia vinte e cinco de Abril, ou talvez num dos dias seguintes, não sei bem, o meu avô, que até essa data tinha sido apenas o médico que ajudava quem podia e quem não podia, passou, de um momento para o outro, a ser o fascista. Nesse dia juntaram-se no largo, em frente à casa, um grupo de revolucionários que atiraram pedras às janelas e gritaram lá de baixo, durante toda a noite, "fas-cis-tas! Fas-cis-tas, Fas-cis-tas!!" E lá dentro, depois de se substituírem nos escaparates as salvas de prata, a maior parte delas oferecidas por doentes outrora agradecidos, por pratos de faiança, e de as pratas fascizantes terem sido levadas para o sótão, escondidas por entre folhas de papel de jornal dentro de caixotes de cartão, de onde só voltaram a sair depois da minha avó morrer, fez-se um silêncio de dias, as portadas fechadas, as portas trancadas, as luzes apagadas, à espera de ver o que aquilo ia dar. O medo novamente a bailar no ar, crepitante.

E eu, uns anos depois do vinte e cinco de Abril, muito pequenina, gostava de ver na televisão as pessoas a gritar, "o povo unido jamais será vencido", gostava de fazer como elas, de marchar pela sala, punho fechado, a repetir aquelas palavras, adorava a música da gaivota, de a cantar, música que ainda hoje, como nessa altura, me traz as lágrimas aos olhos, mas a minha avó, nervosíssima, mandava-me calar, que aquilo era feio, que tinha horror à política. Durante muito tempo não percebi o vinte e cinco de Abril, é que aquilo da liberdade, de juntos sermos mais fortes e de podermos dizer o que quiséssemos, parecia fazer tanto sentido, mas, ao mesmo tempo, havia qualquer coisa terrivelmente assustadora naqueles acontecimentos.

Demorei muitos anos a desfazer este nó.



17 comentários:

  1. E acha que agora já pode dizer o que quer, sem que isso lhe cause olhares enviesados e cuspidelas do "povo"? Duvido. A "Liberdade" só veio para quem andar daquele (o tal) lado do caminho...

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    1. Acho que isso há-de sempre acontecer... mas podemos dizer o que quisermos. Temos é de estar preparados para aquilo que os outros quiserem dizer :)

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    2. Eu quero mais do que verbalizar a minha opinião, quero respeito, quando o faço. E isso, é raro.

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    3. Pois... não sei que lhe diga... há-de sempre haver quem não respeite...

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  2. São as duas faces da mesma moeda.
    O meu avó era um grande produtor de vinho e tenho de admitir que ganhou muito dinheiro exportando para a guerra do ultramar. Quando se deu o 25 de Abril invadiram as suas empresas e terras.
    Mas o que surpreendeu toda a minha família foi o facto do povo da nossa terra se ter unido e juntos expulsaram os arruaceiros, que sob a escolta de revolucionários pensavam que podiam invadir e usurpar o que não lhes pertencia.
    O meu avô sempre foi um homem muito bom e repartia muito com o seu povo, dando terrenos para se construir um clube de futebol, construiu um mercado, etc, a maior parte dos terrenos que hoje pertencem à camara eram dele e por isso mesmo era muito querido pelo povo e o seu povo o defendeu.
    Eu cresci a ouvir esta história e com esta mesma história percebi que existem sempre duas faces da mesma moeda.
    (desculpe ter invadido o seu cantinho para contar um pouco da história da mh família)

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    1. Fez bem :) também nos aconteceu a mesma coisa na Beira. A população também se juntou para proteger a casa ;)

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  3. Esta coisa das revoluções tem muito que se lhe diga, não é verdade? Se agora tivessemos um novo "25 de Abril" gostava de ver todas as casacas a serem viradas. Quem é que agora por conveniencia não estaria a chamar as seus compadres de fascistas?

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  4. Compreende-se a atitude da sua Avó! As pessoas (algumas),tomaram atitudes condenáveis! Também eu ainda hoje me arrepio ao ouvir a "Gaivota"!!!

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  5. Pipocante Irrelevante Delirante25 de abril de 2015 às 23:42

    O golpe militar de 1974... Perdão, a revolução popular trouxe à tona uma espécie autóctone peculiar: o tipo que gosta de mandar, mas não pode. É o Magala que se faz general, o empregado que se faz patrão. São muitos anos de subalternidade reprimida.

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  6. Também tenho um episódio assim na familia. Um conhecido médico oftalmologista que ajudava tudo e todos tb se viu apelidado de fascista...

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  7. Não tenho nunhuma história dessas na família, pertencemos ao povo, mas entendo tão bem a tua avó, cresci tb a ouvir mal dos políticos, da política em geral, e eu própria comprovei o que penso quando participei em mesas de voto :( o povo poderá estar unido mas jamais a população estará unida :(

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  8. É o outro lado da moeda do 25 de Abril.....mas como aos olhos de muitos a história é muito recente, o outro lado da moeda não é revelado....É que vendo a coisa à distância e só sabendo o que a história vai contando, ficamos com a sensação de que quem não fosse comunista ou socialista era fascista. É a mania de se tapar o sol com a peneira e de não separar as coisas, e de contar apenas o que fica bem....E o pós 25 de Abril, o Verão Quente? Quem é que fala dessa parte da história, do outro lado da moeda???

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  9. Obrigada pela partilha. Como é habitual, mais um episódio muito bem narrado.
    Ora bem, este é o trigésimo quinto 25 de Abril que vivencio. Com o passar do tempo fui-me apercebendo que não existe um 25 de Abril, mas sim um por cada pessoa - milhões de faces, diferentes registos e perspectivas, como aliás é habitual em tudo o que preenche o universo humano. Todas de igual e imenso valor, necessárias para uma mais extensa e global compreensão dos eventos, do mundo, das pessoas.
    Eu, que nasci após o 25 de Abril, que pertenço a uma geração protegida, (pelo menos até este período troikista), de todas as agruras, dores e ausências, oriunda de uma classe média trabalhadora que se criou a si própria e foi parida também graças a Abril, e que é hoje uma imensa força motriz do nosso país, (talvez uma das que impedem este barco de se afundar de vez), revejo-me sobretudo nas palavras "a intenção foi boa..."
    Só quando cheguei à faculdade é que conheci pessoas, da minha geração, que criticavam Abril duramente. No início fiquei chocada, mas foi o grande ponto de viragem para interiorizar que a História é um arco-íris de perspectivas. O que não é bom nem mau, é humano. Somente humano. Abril será sempre uma espécie de guerra aberta, em que as pessoas se dividem sobretudo pelas condições sócio-económicas em que as suas famílias se encontravam na época.
    Para mim o feriado de Abril serve para celebrar um primeiro baby step (mal dado, bem dado, ou assim assim, as opiniões variam) de um longo trilho que temos pela frente, na conquista da evolução, da liberdade, de um paradigma social verdadeiramente evoluído. Gosto de pensar que, também graças a Abril, hoje somos, enquanto massa de gente composta por toda a população, mais instruídos, melhor preparados, mais equlibrados, mais "olhos nos olhos". E isso é fundamental para a nossa demanda por essa sociedade melhor.

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  10. O meu avô era proprietário de um estabelecimento comercial e tinha empregados, imagine-se. Trabalhou desde os onze anos, veio sozinho para Lisboa ainda adolescente e na altura do 25 de Abril estava lindamente na vida, fruto do seu trabalho, e adorado pelas pessoas que trabalhavam com ele. Nessa altura teve medo e conta as injustiças que se cometeram. Sim, também as houve. Não foram só cravos.

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