domingo, 8 de julho de 2012

O Preto

Em casa da minha avó sempre houve cães. Isso era bom porque eu gostava de cães e a minha mãe nem sempre os quis. Uma vez comprou-me um caniche preto miniatura que, pouco tempo depois, se veio a revelar um cão d'água gigante. Claro está que foi de malas aviadas para casa de vovó, que lá é que havia espaço...
Acontece que os cães de vovó eram cães de exterior, que não estavam autorizados a entrar em casa. A casa, era para as pessoas e os cães sabiam disso. Como tal, paravam à porta e ficavam a olhar lá para dentro, para o mundo proibido.
No entanto a miniatura que se veio a revelar ser coisa enorme e que já tinha provado a doçura das alcatifas, a suavidade das almofadas e a delicadeza dos sofás, não acatava as ordens com a mesma facilidade. Preto, de seu nome, aproveitava todas as oportunidades para se introduzir furtivamente no interior da habitação. Era sempre escorraçado impiedosamente mas, ainda assim, insistia na aventura. 
Preto era esperto e aprendia tudo à primeira. Fazia gracinhas, ia ao talho buscar ossinhos (neste caso concreto, fémures de vaca, que nem passavam no portão... deixando a minha avó possuída pelo Demo e à beira de uma apoplexia, com aquelas carcaças de dinossauro a povoar o seu jardim), atirava-se do parapeito do primeiro andar, directamente para a rua, para ladrar aos motociclistas que por ali passavam (causando diversos acidentes - felizmente sem gravidade) e... saltava... Preto saltava sempre que dávamos duas palmadinhas seguidas com a mão em qualquer superfície. Tap, tap e Preto elevava-se, qual pomba branca pelos ares. Nós gostávamos daquela habilidade e batíamos amiúde com as nossas mãozinhas para assistir àquela proeza.
Um dia, estava a família toda sentada à mesa a degustar o cabrito próprio do Domingo de Páscoa (e aqui têm de fazer um esforço para imaginar os copos de cristal de pé alto, o melhor serviço de porcelana, a toalha de renda mais bonita que só saía cá para fora em dias especiais, o centro de mesa com as flores mais vistosas e o par de candelabros de quatro velas que as acompanhavam) quando Preto aparece, pé ante pé, na sala de jantar. 
Foi nesse momento que papai, chamando Preto até si, bateu duas vezes seguidas com a mão na sua própria perna. Acontece que Preto, nervoso com a ilegalidade que estava a cometer, confundiu o chamamento de papai com a ordem para saltar e, como cão bem ensinado que era, impulsionou o seu corpo, ergueu-se no ar, e aterrou pesadamente em cima da mesa, atirando copos, pratos, flores e velas em todas as direcções. O vinho voou dos copos em direcção às nossas roupas, o cabrito saltou da travessa directamente para a boca de Preto, as batatinhas assadas rolaram pelo tapete e, num único segundo, os festejos pascais de vovó foram selvaticamente arruinados. Para grande humilhação de vovó não havia um cabrito substituto na cozinha, pelo que nos alimentámos, naquele dia tão especial, a ovos mexidos
A partir dessa altura, sempre que havia festejos, Preto era religiosamente amarrado com uma corda com nós cegos, no local mais longínquo do jardim e a empregada era instruída a ficar de sentinela na varanda, por forma a garantir a segurança dos comensais.

Eis-me, vestida de chinesa (já com olho nas
 economias emergentes), a domar a fera.
AGORA, IMAGINEM-NO EM CIMA DA MESA... 


4 comentários:

  1. Agora feche os olhos e imagine a pequena Cutxi on steroids, e os sofas lá de casa... Brrrrr... Eheheh :D

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    1. Não são preciso steroids... nem sequer é precisa imaginação... :)))

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  2. Até às lágrimas!
    Que boa contadeira de estórias tu és!
    Ahahahahahahah

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