A barbearia tem três cadeiras e dois barbeiros. O senhor Basílio e o senhor Manuel. Entrei lá pela primeira vez, vai para dez anos, quando desisti de levar o meu filho ao cabeleireiro trendy que me cortava o cabelo, que, por ficar mais longe de casa, me obrigava a ter de o ouvir chorar durante todo o percurso de regresso, queixando-se dos cabelos a picar. E eu, que quando era pequena, era levada pela minha avó à Mariazinha, que me enchia a roupa de cabelos, fui sensível a esse argumento, que ainda me lembro bem do que é isso dos cabelos a picar.
Foi assim que passei a levar o meu filho à barbearia. Mas esta não é a história de uma barbearia qualquer, é a história de uma barbearia que parou no tempo. É que o senhor Basílio e o senhor Manuel, que trabalham lado a lado vai para cima quarenta anos, não se falam há mais de vinte. E o ambiente ali dentro só não é de cortar à faca, porque ali tudo se corta à navalha... ou à tesoura. Nos dias piores, corta-se à máquina. Parece que tudo começou com a questão da limpeza, que era feita com esmero pela mulher do senhor Basílio, mas que não agradava ao senhor Manuel. E a partir daí, já se sabe, os dois desentenderam-se e a limpeza deixou de ser feita. Se a mulher do senhor Basílio não servia, pois muito bem, a mulher do senhor Basílio não limpava, mas se a mulher do senhor Basílio não limpava, logo ela que era conhecida pelo seu asseio, então ninguém limpava. Foi assim que os dois homens deixaram de se falar e se começaram a odiar, claro que, de início, se pensou que era uma coisa passageira, que o senhor Basílio e o senhor Manuel haviam de voltar às boas. Mas não. O que começou numa pequena zanga, evoluiu para um incómodo rancor e daí para um ódio visceral. Um ódio que cresceu ao mesmo ritmo que o pó se foi acumulando nos cantos da casa, nas revistas de 1968 e nos cortinados outrora brancos. Uma situação que ambos consideravam insustentável mas a que nenhum dava o braço a torcer.
Nós somos da facção do senhor Basílio, não por escolha consciente, mas por ter sido ele quem nos atendeu da primeira vez que lá entrámos. E se a escolha da cabeleireira deve ser respeitada em qualquer estabelecimento, nesta barbearia é absolutamente sagrada. É que o grau de tensão dentro daquela loja é de tal forma elevado que até o ar estala com pequenos choques eléctricos, e ninguém quer fazer nada que possa conduzir à morte de um dos homens. É que estamos todos absolutamente conscientes que basta um pequeno rastilho para que ali aconteça uma tragédia. Ali os clientes falam baixinho como numa igreja, os gestos são pensados e reduzidos ao mínimo, não só para evitarmos o pó, mas porque pressentimos o perigo. O perigo que, de um momento para o outro, os objectos cortantes que estão nas mãos daqueles dois homens, possam ser usados para outra coisa que não cortar cabelos. Agora o meu filho já vai sozinho à barbearia, mas, quando ia com ele, posso garantir que o senhor Basílio rosnava, rosnava sempre, mesmo quando falava. Lá por detrás do seu bigode grisalho e revirado, por detrás da voz glico-doce, havia ali um rosnar constante e absolutamente assustador. Ainda bem que já não preciso de lá entrar. É que, na verdade, o melhor momento do tempo passado naquela barbearia, era o momento de sair.
Doce Palmier,
ResponderEliminarApesar de ser o homem a medida de todas as coisas, continua a haver quem mate por um palmo de terra. Coisas de homens que não amuam, mas odeiam com o fígado. Enfim, desde que não cortem com a máquina...
Beijos,
Outro Ente.
Neste caso matam por uns grãos de pó... :)
EliminarMas gostaste da liberdade de entrar lá com o teu filho, certo?
ResponderEliminarA liberdade é tudo. ;)
Na verdade, neste caso, aprecio mais a liberdade de de lá sair! :D
EliminarNa Vila onde vivo existia uma barbearia onde o barbeiro era bêbedo e não era por isso que tinha falta de clientes, afinal o que é um cortesinho na orelha para um homem a sério!?
ResponderEliminarA moda da barbearia...Todos falam e ninguém diz nada que valha a pena ou acrescente. Isto parece a história do vestido,vê se bem que não há outro tema melhor.
ResponderEliminarAlguém me explica o fascínio pelas barbearias ????
ResponderEliminarE que tal uma invasão de vassoura e espanador em punho?
ResponderEliminar:DDDDDDDDDDDDDD e a cantar! Água fria da ribeira! :DDDDDDDDDD
Eliminarhttp://complexidadeecontradicao.blogspot.pt/2014/05/lisboa.html#links
ResponderEliminarSoava-me familiar. Será o mesmo?
É bem capaz de ser :))))))
EliminarSerão pedaços de história!
ResponderEliminarÉ um desperdício a menina Palmier não escrever um livro, é é. Tem uma prosa tão elegante :)
ResponderEliminarPois... mas é preciso um bocadinho mais que alinhar palavras... :)))) falta-me o enredo :D
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