quinta-feira, 5 de março de 2015

A Lúcia

A Lúcia ocupava a ala sudoeste da casa e tinha um feitio terrível, gritava com as ajudantes e não deixava dúvidas a ninguém: quem mandava na cozinha era ela. Ali ninguém podia dar sugestões e aquilo que cozinhava era para ser comido à mesa, depois de devidamente empratado nas travessas. Nunca por nunca deveríamos entrar na cozinha e roubar uma batata frita. Nunca! O único que o conseguia fazer era o meu pai, o eterno menino Zé, que era rapidíssimo, e, ao longo dos anos, conseguiu apurar uma técnica infalível. Mas, mais do que a técnica, o menino Zé gozava de um estatuto especial, já que, com ele, a Lúcia era condescendente, e enquanto ele se escapava pela copa com uma mão cheia de batatas fritas, ela limitava-se a sacudir-lhe o pó com o pano da loiça, enquanto sorria e gritava "fora daqui, seu ladrão!". Mas isso não era nada... é que, quando a Lúcia se zangava, era o cabo dos trabalhos - e a Lúcia zangava-se muito. Nesses dias, ninguém se aproximava da cozinha, é que, nesses dias, as panelas falavam mais alto que os seus resmungos. Dir-se-ia que, nesses dias, as panelas e os tachos se juntavam para um concerto ensurdecedor. Era também nesses dias que a minha avó aproveitava para explicar por que razão nunca entrava na cozinha: "é que se um dia lá entro e ela tem uma dessas fúrias, vou ter de a mandar embora..." e a minha avó sabia bem que a Lúcia era insubstituível. Nesses dias ficávamos sentadas na sala, nos sofás cor-de-rosa, aqueles com as almofadas debruadas com uma fita de viés amarela, a ouvir o concerto para panelas número 5, enquanto a minha avó, enervadíssima, fazia a contabilidade aos estragos e murmurava, de si para si, que, um dia, um dia ainda havia de ter um problema sério com aquela mulher.
O dia começava cedo na cozinha, logo de manhã a Lúcia ia às compras e, quando voltava para casa, e antes de se dedicar a fazer o almoço, faziam-se as contas. E as contas tinham um ritual muito próprio. É que a Lúcia não sabia ler nem escrever, vai daí, decorava os preços de tudo o que comprava, para ditar à minha avó, que apontava tudo na sua grande agenda para, no fim, fazer a prova dos nove e verificar que sim, que o troco estava certo, ou que não, não estava certo, caso em que tinham de recomeçar tudo do princípio. Só depois de feitas as contas se dedicava, então, aos cozinhados. E como cozinhava! Cozinhava para o andar de cima e para o andar de baixo. Cozinhava para as empregadas e para as enfermeiras, fazia o almoço dos filhos e o almoço que os filhos levavam ao marido, cozinhava para todos. No andar de baixo, na Casa de Saúde, almoçava-se mais cedo e os pratos variavam consoante as maleitas dos doentes que lá estavam internados. E, quando os pratos estavam prontos, a Lúcia abria a portinhola do elevador manual que ligava a cozinha à Casa de Saúde, metia um tabuleiro lá dentro e gritava pelo buraco, "dieta para o quarto dois", depois dava à manivela para que a dieta seguisse o seu caminho e, logo que percebia que a dieta tinha abandonado o elevador, dava à manivela para fazer seguir um "geral para o quarto cinco", o quarto do Senhor Capitão, que, mais tarde, quando a Casa de Saúde fechou, enfeitiçado que estava pelas delicias da Lúcia, ficou a viver lá em casa até morrer, coisa que só fez depois de se certificar que, em testamento, lhe deixava uma casa para habitar. Por volta da uma da tarde, a Lúcia abandonava o sobe e desce do elevador e dedicava-se então ao andar de cima. Nunca sabíamos o que íamos almoçar, aliás, à pergunta "o que é o almoço", o melhor que conseguíamos obter era um "casacas de tremoço". Portanto, quando nos sentávamos à mesa, o que vinha da cozinha era surpresa, mas uma coisa era certa, era sempre maravilhoso. Pratos simples que, feitos por ela, deixavam de ser simples, a salada russa, as fatias recheadas, o arroz de pato, os ovos estrelados com batatinhas cozidas, a salada de alface cortada em Juliana e mil outras coisas que, em sobrando, aproveitava para fazer um prato ainda melhor, reinventava tortas, tartes, croquetes e pastéis que ficaram na memória de todos os que os provaram. Durante anos, e até ter dignidade para me sentar à mesa com os adultos, comi na cozinha, supervisionada pela Lúcia, naquela mesa enorme com um tampo de mármore, a mesma mesa onde se moía a carne numa máquina de manivela que se atarraxava à mesa com um parafuso de orelhas, e de onde, como por magia, se via a carne a sair em pequenos canudos pelo outro lado.


À Lúcia já não posso dar uma constelação de estrelas Michelin, mas posso deixar-lhe este palavras, em jeito de agradecimento.



32 comentários:

  1. É a vida a seguir o seu curso, Palmier...

    ResponderEliminar
  2. Até senti o cheiro dos cozinhados da Lúcia.

    A minha mãe e avó também sempre detestaram que lhes perguntássemos o que era a comida. Porque será?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu também não gosto responder à pergunta o que é a comida, pois com as três crianças cá de casa já sei o que me espera, alguém irá contestar e dizer, mas eu não gosto, outro eu gosto, e outro a mim não me apetece... Por esse motivo, evito dar uma resposta concreta para que não desanime antes de cozinhar. Na hora de ir para a mesa, já sabem gostem mais ou menos têm que comer. Dessa forma não me aborreço com a refeição antes sequer de ainda estar preparada. Cá por casa resulta melhor assim.

      Eliminar
  3. Li-vro, li-vro, LI-VRO!! a sério, para quando é o livro? :)

    ResponderEliminar
  4. :) bonitas memórias e senti-me transportada para outros tempos (mesmo sem Lúcia) - obrigada!

    ResponderEliminar
  5. Para quando, um livro de memórias? Eu comprava, claro está.

    ResponderEliminar
  6. Fizeste-me lembrar que na casa da tua avó tudo funcionava com manivela. O elevador , o passe-vite, a máquina de picar carne, a máquina de moer o café, e até as persianas eram movidas com manivela.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Agora fiquei confuso. Então a carne não era "raspada"? E já agora, o que é isso de "carne raspada" e não picada?
      Antecipadamente grato,
      Outro Ente.

      Eliminar
    2. A carne dos hamburgers era raspada (em cru, com uma faca, tal como o nome indica, para tirar raspas). Esta maquineta era para moer a carne cozida ou já cozinhada. ;)

      Eliminar
  7. Adorei Palmier! Consegues transportar-nos para os locais, e aproximar-nos das pessoas.
    Palmas para a Palmier.
    Maria

    ResponderEliminar
  8. Na minha casa, à pergunta do que era o almoço a resposta era sempre "línguas de perguntador", o engraçado é que muitas vezes dou comigo a responder isso mesmo quando a pergunta é feita.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu também digo isso (aprendi com a minha mãe, que às vezes, para variar, respondia que era cozido. Quando eu dizia que sabia perfeitamente que não era ela dizia "é sim, não te vou dar o almoço/jantar cru". Se a pergunta era "o que estás a fazer?" a resposta era, invariavelmente, "A cortar para não crescer") :DDD

      Em casa da minha sogra dizia-se "o que é o almoço? Cascas de tremoço. O que é o jantar? Bordas de alguidar."

      Eliminar
    2. Sim, línguas de perguntador também é um prato clássico da minha infância :))

      Eliminar
    3. Por aqui respondia-se o mesmo: línguas de perguntador!! :)

      Eliminar
    4. Na minhacasa soavam "vao ser bifes de vassoura a quem pergunta"

      Eliminar
  9. Já sabia que ia adorar. Por isso, li em voz alta.

    ResponderEliminar
  10. Histórias de "elite"!

    ResponderEliminar
  11. A da minha avó era a Maria! E que saudades dela, da comida dela, dos mimos dela e ...da Papinha...(era como nós chamávamos à papa de fruta composta por fruta variada e bolacha Maria tudo esmagado ao garfo e regado com sumo de laranja).
    Se um pedia, os outros também queriam e se não pediam ela perguntava "e vocês não querem?" e fosse uma ou várias, tudo era esmagado ao garfo, nada de varinhas mágicas ou afins...

    ResponderEliminar
  12. Uma bonita homenagem a quem sabia tirar o melhor partido de cada ingrediente. Uma alquimista!

    ResponderEliminar
  13. Estou aqui a ponderar escrever um post "Palmier Style", com as peripécias havidas com o mordomo Zacarias e Manelinho, o criado de fora, e o quanto respeitávamos tanto esta boa gente, que sabia bem o seu lugar...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Escreva, escreva :)))))

      (o post que ainda não escrevi, mas que um dia hei-de escrever, passa exactamente pelas últimas palavras do seu comentário. Essa parte do "seu lugar". É que, e do que me ia apercebendo, estavam todos realmente seguros do seu lugar. Havia uma hierarquia que não era questionada. E isto é estranho tanto para os que "serviam", como para os que eram servidos. Para os primeiros por razões óbvias, já para os segundos, e referindo-me especificamente à minha avó, a verdade é que ela não tinha dúvidas de qual era o seu lugar, acho, aliás, que nunca se questionou. E isso, hoje em dia, quanto mais não fosse por ser politicamente incorrecto, é um enigma quase impossível de perceber :)

      Eliminar
    2. A minha avó, por exemplo, nunca poria a palavra "servir" entre aspas. :D

      Eliminar
    3. Obrigado Pipoco por me ter dado a conhecer o Palmier Encoberto, estou deliciado!

      Eliminar
  14. A minha avó ainda hoje se refere à empregada (ou senhora que ajuda como tenho ouvido dizer por aí) como criada. Não me choca o termo sabendo que é empregue pela minha avó que sempre as tratou com muito respeito sem ter de como a Palmier disse, impor uma hierarquia. Em miúda também me lembro de almoçar na cozinha vigiada pela senhora Angelina. O horário de almoço não era alterado em função dos netos e da hora de regressar à escola. Não foi assim há tanto tempo (tenho 25 anos) mas parece a anos de luz do modo de vida dos dias de hoje. Gosto muito do que escreve Palmier, faço parte do grupo que torce para que a Palmier escreva um livro. Gabi

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A mim também não me chocava, mas percebo que, para quem não assistiu a esta realidade, possa ser difícil de perceber :)

      (obrigada :)))))


      Eliminar
  15. muito bem escrito. Até nos julgamos assim numa espécie de downtown abbey versao lusa (e isto, note-se, sem ponta de ironia e a servir para reforcar essa ideia do conhecer o seu lugar "sem aspas")

    ResponderEliminar
  16. Que belas recordações!! E uma bonita Homenagem!!

    ResponderEliminar