sexta-feira, 8 de abril de 2016

O Oratório - Outros Tempos

Debaixo do esconso de umas escadas, em casa da tia Póli, havia duas divisões: de um lado, fechado à chave, um pequeno laboratório com uma balança de precisão, uns pesos minúsculos, pipetas, recipientes de vários tamanhos e formas, potes e frasquinhos de várias cores e feitios, com conteúdos desconhecidos, onde se praticava a alquimia, do outro, o oratório. Ao oratório acedia-se passando através de uma grande cortina de pesado veludo vermelho-sangue debruada com umas franjas douradas.
No oratório, local de grande reverência, ardia sempre uma vela num pequeno copo de vidro encarnado que emprestava uma luz colorida, diria até infernal, àquela pequena divisão onde se praticava a reza. Ao fundo da pequena divisão estava, imponente, o grande oratório de pau-santo, com duas meias portas em ogiva e lá dentro uma miríade de santos de todas as nações. Santos, arcanjos e divindades várias, cada uma com a sua função e mister. Não se julgue no entanto que a posição das diversas divindades era estática. Não era. A tia Póli, no caso de não ser atendida com a prontidão que se exige a uma qualquer divindade, era muito severa com os seus santos. Não raras vezes pude observar um pobre Santo António virado de costas para o canto do oratório, um São Tomás de pernas para o ar ou um São João com a cabeça coberta por um pequeno saquinho de veludo escuro, cumprindo assim, por atraso no atendimento de um pedido, um qualquer castigo determinado friamente pela tia Póli. Por vezes havia santos que eram retirados do oratório e postos de parte numa prateleira, outros despojados das suas roupagens e alguns eram amarrados a outros para, em conjunto, potenciarem a sua santidade e satisfazerem as caprichosas solicitações da tia Póli. Contava muitas vezes a Maria, a sua criada, enquanto fazia o sinal da cruz e rezava um Pai Nosso, aquele caso, não sei se é verdade porque eu não assisti, de um santo que, despertando a fúria da Tia Póli, foi seviciado como nenhum outro. Parece que esse santo foi excomungado, retirado do oratório e levado sem apelo nem agravo para o pequeno laboratório de alquimia onde foi enxovalhado com palavras várias, afogado num alguidar com um líquido desconhecido mas, como era um santo casmurro e obstinado e nem assim acedeu aos pedidos feitos pela tia Póli, foi posteriormente queimado na grande lareira da sala à boa maneira da Santa Inquisição.
- Que sirva de aviso aos outros, murmurou a Tia Póli entre dentes.
A verdade é que, antes que o espírito revoltoso se alastrasse como num rastilho às restantes figuras do oratório, era importante dar o exemplo e mostrar aos santos que estavam ali para realizar o seu trabalho milagreiro e, se o não fizessem, que ficassem sabendo: não havia santo que escapasse ao castigo divino da tia Póli.



13 comentários:

  1. Era o que haviam de te fazer, passas todos os santos dias a fazer asneiras...

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  2. Maravilhoso. Há qualquer coisa de divino numa pessoa que se lembra de por os santos de castigo. Foi das melhores histórias que já li.

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  3. muito bom :) clienteperfeito.blogs.sapo.pt

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  4. gosto quando te dedicas à prosa.
    :)

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  5. oh Palmier, tu és prima do Tom Sawyer?
    é que a tia dele também era Poli!?
    a empadinha

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