quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O meu pai também devia ter um blog

Sentado numa cadeira de palhinha esmago com os pés insectos de inúmeras ordens e formatos. Em redor o branco ladrilhado do chão é uma amálgama viscosa em estertor e interrogo-me se se tratará de um jogo e, nesse caso, se os espécimes terão diferentes cotações, quando, sem o esperar, entra uma mulher; tinha visto um passarinho e descreve-mo. Concluo que se trata de um insecto voador, enorme, raro e venenoso.


Sonho, a Lua, o fundo do mar, aves engaioladas - mas as gaiolas voam! - e uma colossal construção com uma máquina iluminada e solitária, cuja secreta tarefa não consigo imaginar. As paredes vibram, encolhem e dilatam, superfícies de dimensões incomensuráveis que se cruzam como bissectrizes caleidoscópicas. Fujo. Na capa de um jornal a minha fotografia: juiz, salteador e testemunha! Aos tiros mato dois cúmplices e uma mulher de negro reconhece-me mas não tenho a minha cara. Corro por um complexo deserto e, sem destino, perco-me nas trevas. As trevas não são negras. São azuis, do azul mais profundo. Estendo um braço nas trevas azuis e encontro uma resistência, geleia, coisa húmida, espuma, tecido ou gás pesado. Empurro e atravesso. Do outro lado é dia. Quero sair mas a porta, empenada pela humidade, opõe-se á abertura e tenho de assaltar o mundo pela janela. Lá fora uma longa fila de rostos contraditórios em ordem nem sempre consentida, clama horrorosas aflições. O meu lugar é sentado a uma mesa onde os atendo. Conheço-os, são lógicos, paralógicos, profetas, renegados, emissários, vitimas e agressores, muitas vezes de si próprios. Alguns são apenas simples, outros, falsamente múltiplos, procuram-se entre espelhos paralelos e não se entendem entre eles. Soturnos e inquietos aglomeram-se, ansiosos por virem até mim. Vêm e eu observo-os circunspecto, oiço-os e por vezes falo-lhes ou mexo-lhes e a todos dou impressos onde traço gatafunhos. Compadecido, ofereço muitos aos mais atormentados, outras vezes, enfadado, dou só um. O da frente grita que lhe esconderam em casa um animal medonho, víbora ou escorpião. Chora, implora e ameaça, armado de tenaz. A mim parece-me que talvez não exista mas a dúvida oprime-me, penetra-me e petrifico num oblongo prisma multifacetado. Então sou aspirado, invertido negativamente, e parto, turbilhão atravessando pela vertiginosa rede de dimensões convergentes, até ao zénite, à minha verdadeira identidade.

NÓS, AHNIRALC, DEUS-IMPERADOR DAS SETE GALÁXIAS NODAIS, PRIMEIRO E ÚNICO DA NOSSA DINASTIA, senhor supremo de cem mil milhões de mundos, despertamos:  semideuses, heróis, sábios, eminências e seus séquitos prostrar-se-ão até ao horizonte, suspensos das nossas manifestações. Eles não entendem que todos os acontecimentos possíveis têm de ocorrer e que, por isso, lhes concedemos a liberdade do arbítrio. Com hinos nos invocam mas também nós buscamos algo ou alguém, superior, igual ou simplesmente imprescindível, ordenamos ao mestre geómetra que maneje o seu compasso. De novo na matriz, precipito-me na exponencial perpétua de instantes que se bifurcam, afastam e interceptam, abrangendo todas as séries de probabilidades. Numas existo de uma maneira, noutras de outras. Não existo em muitas, em algumas existes só tu, noutras não existe ninguém. Não quero viver na eternidade mas no tempo e reencarno. Sou uma membrana infinitesimamente desdobrada, um remoinho, um ser difuso no espaço, um padrão, um gene, um réptil gigante e outras formas. Agora estou entre duas superfícies, uma na qual repouso, outra suave e doce, que me cobre e que me beija. Fico. Sonho e os seus beijos, presentes do passado, apagam todas as outras recordações. Não sei onde estou, não sei quem é ela, não sei mesmo quem eu sou. Poderemos ser qualquer homem com qualquer mulher. Então, abraçados, eu, que sou todos os homens, e ela, que é todas as mulheres, queremos ser também o outro. Fundimo-nos um no outro, em brasa, confundidos como notas de interminável escala, sucessivamente sobrepondo nascença á morte. Mais tarde abro os olhos e verifico a sua metamorfose. Não é um novo aspecto, qualidade, força, nem sentido, mas é uma diferença inestimável. Damos as mãos, rimos, rasgamos a seda do casulo e lançamo-nos para o céu. Ela, borboleta, rodopia numa espiral que se afasta, livre, para o Sol ou para a chama. Eu, sombra de um sonho, talvez também metamorfoseado mas áptero, caio de novo no sono. Quando acordo, recordo o dia anterior como se ocorrido outrora, mas amo-a, como ela me ama, na intemporalidade das nossas memórias. Procuro-a mas só encontro uma mensagem, três símbolos idênticos que não consigo decifrar. Parecem flores ou aracnídeos e a todos faltam pétalas ou patas em posições variáveis. Anoiteceu. Das paredes dilatadas, medusas, animais ígneos e outras estranhezas observam e murmuram. Apago as luzes e refugio-me no escuro até que a sinto deslizar. Abraçados bebemos, fumamos e rimos das sombras negras das suas asas dançando nas paredes ao ritmo dos estalos da minha  cauda. É festa e mais tarde persigo-a, relinchando, entre ruidosos convivas que incitam e aplaudem.  Como um morcego pendura-se no tecto. Grito, salto, mergulho sobre um grupo de sereias e envolvo-me com elas, a escorrer, a espadanar, a música estridente, os uivos e os urros da orgia, anjos ébrios, criaturas libertas, sem medo nem esperança. Lá em baixo a terra vibra e treme martelada por explosões descomunais. O céu está rubro dos incêndios, a turba em pânico, as máquinas, as luzes, os gritos. Toda aquela aflição, a destruição, aquele desatino, o pavor das pessoas, tudo aquilo me dá uma inebriante vontade de rir. Gargalhadas incomensuráveis, não consigo deixar de rir. É a guerra mesmo que me dá vontade de rir, aquela loucura tinha uma qualquer incongruência humorística à qual era impossível escapar. Rebolo-me a rir, rastejo, arrasto-me a rir e bato a um portal.  É um quartel repleto de inimigos! Como me rio! Enquadram-me nas suas miras e também riem, rimo-nos todos às gargalhadas e matam-me.


Incorpóreo pairo num limbo ou estupor povoado por entidades, coisas, ou forças que se defrontam em pesadelos inenarráveis. Aí vim a saber que para igualar o criador há que aniquilar a sua obra e que não pode haver senão um fim:  tudo o que foi criado será destruído e o ciclo fechar-se-à.  


Nem um só momento suplementar. Lá fora é noite enevoada e muda. Percorro a casa, congelada, quase irreconhecível, o relógio parou, não sei se vivo um presente, um passado ou um futuro, a noite pode ser qualquer noite.   Desorientado regresso á solidão da cama e adormeço. Compreendi que estava a sonhar e tentei despertar mas pensei: é inútil, não despertarias para a vigília mas para um outro sonho; esse sonho está dentro de outro sonho e assim sucessivamente, sem princípio nem fim! A  revelação penetra-me como uma fulguração: nada existe, ou seja, tudo é sonho!


Fico imóvel, mudo e cego, nem morto nem vivo, vazio, sem forma nem substancia, só essência, pensamento puro. Qualquer mente, privada do que lhe dá identidade - a memória da própria história - seria o que eu sou, eu que fui todos os outros e, destino paradoxal, não sou ninguém. Sou uma mónada de intelecto, memória evanescente de ilusões, nas quais eu e outros nos esfumamos como fantasmagorias de sonhos que fomos. Sou consciência sem mundo, um ponto sem espaço, uma aberração absoluta na abominável normalidade do não ser. Sou infinito porque não há princípio nem fim, omnisciente e  ubuiquo porque nada existe fora de mim e sou a medida de todas as coisas, ou seja, de mim mesmo.  Sem dúvida: SOU  DEUS!

Então, absolutamente sábio e sereno, medito: dividir-me em dois e assim sucessivamente - gerando todas as partículas da dinâmica universal - ou sonhar todos os homens e, através deles, os seus mundos e, inexoravelmente, reinicia-se a criação, e o mundo existe, eterna poeira de sonhos, coisa lunática, pretérita e paradoxal, um mundo tonto criado por um deus tolo.

O dia começa ao anoitecer e dura até ao  amanhecer seguinte.   




13 comentários:

  1. Com todo o respeito: Kafka on acid? ;) (Adorei!)

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    1. ahahahhahahhahahahhahahhahahahhahahahhahahahahahhahahahahahhahahahahhahahahhhahahahhahaa
      Quase, quase... :DDDDDDDDDD

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  2. Eu gostei muito. Também li Huxley há muitos anos e gostei bastante.
    Mas se blog houver, estarei presente. :):):):)

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  3. Se vamos por aí, também encontrei o Murakami aqui e ali. Mas num registo mais ácido, definitivamente.

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  4. Adorei, right down my alley. Que venha o blog que tem aqui uma leitora assídua.

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  5. Quem é a Clarinha?

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  6. É :DDDD
    Fiz-lhe o blog num fim de férias há para aí um ano e meio/ dois pus-lhe lá aqueles cinco ou seis textos e depois quando quando voltei cá a casa e fui tentar entrar outra vez ele perdeu não só a palavra-passe como o entusiasmo...
    (Nunca mais lá consegui entrar para formatar, corrigir erros e pôr mais textos... :(

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