terça-feira, 3 de novembro de 2015

Outros Tempos - As Gémeas

A Tia Momó e a Tia Guida cresceram juntas, casaram e enviuvaram sensivelmente ao mesmo tempo e, com o passar do tempo e com a convivência, apesar de serem fisicamente muito diferentes, tornaram-se gémeas, praticamente siamesas. A Tia Momó, anafada e de mal com a vida, vestia de preto, com o colarinho abotoado até ao último botão e sentava-se sempre muito direita, no centro da grande sala lúgubre e austera -que a Tia Momó não era dada a prodigalidades, coisa que, aliás, criticava duramente- e ali ficava na penumbra, como numa recepção real nocturna, ocupando a sua cadeira alta de espaldar de onde, de pescoço esticado como uma girafa, dominava a Tia Guida, criatura magra, frágil e submissa, uma espécie de galgo miniatura, que se sentava aos seus pés numa cadeirinha baixa, de criança, daquelas da feira, pintada de azul-turquesa com uns arabescos em branco e assento em ráfia, vestida com os seus eternos camiseiros de colarinhos à Dumbo e as suas perpétuas calças castanhas à boca-de-sino, que usava em plena década de noventa para provar à Tia Momó, que, também ela, era uma pessoa desprendida e poupada. 
Viviam num mundo lá muito delas, onde ninguém se atrevia a entrar, com medo de, num repente, ser escorraçado pela Tia Momó, que era uma pessoa de muitas opiniões e princípios, que alardeava amiúde, uma pessoa de convicções muito fortes, muito recta, muito íntegra, de uma grande moralidade, uma força do bem que fazia gala na sua frontalidade; era uma pessoa muito frontal a Tia Momó e, por isso mesmo, melhor que as outras. Tudo confirmado pela Tia Guida que estava ali para isso mesmo, para, sempre que a circunstância o exigia, arreganhar os seus pequenos dentinhos assustadores. Tinha-se em muito boa conta a Tia Momó, e, talvez por pairar sempre acima da Tia Guida no seu grande cadeirão de costas altas, transformou-se numa espécie de Cavaco Silva antes do seu tempo: a Tia Momó nunca se enganava e raramente tinha dúvidas. Se a Tia Momó dizia alguma coisa, mesmo que ostensivamente desagradável e agressiva, logo a Tia Guida, com a sua voz fina e sumida, a secundava, que sim senhor, tinha toda a razão, “onde é que já se viu?!, no fundo a Tia Guida estava ali para dar risadinhas de desprezo quando era caso de dar risadinhas de desprezo e para estender uma mão amiga e enxofrar-se com as graves afrontas que a Tia Momó entendia ter sido alvo, porque, na verdade, tudo o que não encaixava nos seus cânones pré-definidos era uma afronta para a Tia Momó. No entanto, se a Tia Guida, lá em baixo, na sua cadeirinha, ousava piscar os seus olhinhos de morcego e abrir a sua pequena boquinha, a Tia Momó também intervinha, não para a secundar, como é evidente, mas para a fazer ver que estava ali para controlar todas as suas palavras, para garantir que não saía da linha que ela, tão habilmente, lhe havia marcado no decorrer dos anos. 

Era uma relação estranhíssima, a da Tia Momó e da Tia Guida, uma relação de que ambas dependiam e se alimentavam e de onde tiravam as forças para encarar de frente um mundo injusto e imoral, como se estivessem sentadas num automóvel, as duas, lado a lado, ainda que em diferentes níveis: uma na cadeira de cima, outra na cadeira de baixo.



26 comentários:

  1. Eu gostava era de ter conhecido os respectivos maridos ( ou deverei dizer mártires?)

    Belíssimo post.

    ResponderEliminar
  2. Isto é verdade? Se é, começo finalmente a perceber algumas das publicações que por aqui aparecem. Esta família é muito estranha.... e ainda bem!!
    Fantástica história, parecem personagens de um filme, as tias Momó e Guida.

    ResponderEliminar
  3. Adoro as suas histórias!

    ResponderEliminar
  4. Um dia, contudo, a tia Guida usou calças à boca de sino 😊

    ResponderEliminar
  5. Possas pah tu até sabes escrever, nem gaguejaste nem nada ihihihih
    Isso era no tempo em que as mulheres não faziam nenhum, só cosiam meias :)

    ResponderEliminar
  6. Alimentavam-se do sangue dos outros! Havia outros, certo?

    ResponderEliminar
  7. Pois eu não gosto destas histórias. Mal escritas e pirosas , pirosas !
    Mas gostos não se discutem , não é assim que o povo diz ?

    ResponderEliminar