Aquela casa na Beira-Baixa era muito
esquisita, tinha um hall com um tecto muito alto, tão alto que ia até ao
telhado, era uma casa com uma torre escondida lá dentro e, na parede da
torre havia janelas, janelas que amarinhavam por ali acima, janelas
desalinhadas, janelas que davam para dentro de casa. Parecia uma matrioska
aquela casa, com janelas que se abriam para dentro de si própria. Como se a
casa estivesse ali debruçada, atenta, com os seus olhinhos matreiros a
espreitar quem chegava. Por causa dessas paredes tão altas aquele hall fazia eco e, por isso, respondia-nos. Era uma casa que olhava e falava. Do que mais me lembro daquela
casa, é daquele hall, era mesmo esquisito aquele hall cheio de janelas e palavras. Também me lembro do meu quarto. Que medo, o meu quarto, que tinha uma janela que dava para
o hall e daquele hall que via e falava não podia vir boa coisa. Vinha luz, é
certo, a luz que escorregava pela porta da sala e que depois subia pela parede
acima e me entrava pela janela, mas, com a luz, também vinha o medo, o medo que deslizava por ali dentro, um medo tão grande,
tão grande que me enchia o quarto, deslizava para debaixo da cama, e ali
ficava, calado, paradão, a certificar-se que eu estava mesmo, mesmo, amedrontada, depois começava a crescer, a subir, a subir, a
crescer, enorme, ocupava tudo e ficava ali a pairar, assustador como só o medo
sabe ser. Acontece que, quando me deitavam na cama não havia nada a fazer, não podia fugir,
se fugisse tinha de descer as escadas e passar pelo hall e, para além disso, eu
era muito pequena e os cobertores eram muitos e muito pesados e por isso não me
restava outra opção senão deixar-me ficar ali deitada, espalmada naquela cama de ferro, agarrada ao saco de água quente, a sentir a janela a olhar para mim e fechar os olhos com força, para ver se me
esquecia.
Não sei se as janelas ainda lá estão,
nunca mais voltei a entrar naquela casa, estive lá à porta umas quantas vezes,
uma porta encarnada com ferragens pretas, porque aquele hall cheio de janelas e sons só podia ter uma porta encarnada com ferragens pretas. A última vez que lá
fomos, foi para a inauguração do busto, que coisa tão estranha essa de
inaugurar um busto, e que palavra tão feia essa: “busto”, uma palavra que lá
longe, no latim, se referia ao lugar onde se queima ou enterra um cadáver. Também
foi estranho isso do busto, é que devia ter sido uma estátua, mas não, lá no sítio da
casa com janelas que dão para dentro, só se fazem bustos. A minha avó ficou muito
zangada com isso do busto, é que lhe tinham dito que era uma estátua e aquilo afinal não era uma estátua nenhuma, toda a gente sabe que as estátuas têm pernas e braços. Para além
disso aquele busto não estava nada parecido com o meu avô, que era muito mais
bonito, parecia impossível que o tivessem feito assim tão feio e, ainda por
cima, depois do cuidado que ela tinha tido a escolher uma fotografia que o
favorecia tanto. Ainda disse isso alto e bom som e com aquela cara de reprovação que só a minha avó sabia fazer, aquela com os olhos para baixo mas a olhar por cima. Mas, apesar da indignação, lá se resignou, afinal sempre
era melhor termos o nosso próprio busto de família, do que sermos uma família sem busto.
Um dia destes, em vez de ir ao Alentejo, levo os meus filhos à Beira-Baixa, a ver o
busto e, com sorte, talvez nos deixem entrar na casa das janelas viradas para
dentro. Vamos de mão dada, para eu não ter medo, claro.
:)
ResponderEliminarGostei muito de ler este post
ResponderEliminarAs casas da nossa infância, as casas de família, que depois se perdem, por uma razão ou por outra, não interessa, são Nós que nos crescem na garganta, mas temos de aprender a desatar os Nós.
ResponderEliminar(é muito bonito pertencer a uma família com busto - ou dois, ou estátuas de corpo inteiro - e motivo de orgulho. Mas também acarreta muitas mais responsabilidades e, não raras vezes, muitas mais tristezas)
Um abraço forte, que é o que precisas :)
:')
EliminarPor isso é que gosto deste blog, tanto da para uma pessoa que se rir como depois tem estes textos fantásticos :) parabéns palmier.
ResponderEliminarObrigada, Sam. :)
EliminarEscreves tão bem Palmier que me consigo imaginar dentro da casa que espreitava.
ResponderEliminarOh pah... assim fico corada... :)
EliminarSe visse em filme, não seria mais real... :')
ResponderEliminarVenha, venha.
ResponderEliminarQue eu dou-lhe a mão e ofereço-lhe um chá.
AnaB
Já estou a caminho! :D
EliminarConsegui imaginar a casa...e fiquei amedrontada.
ResponderEliminar:DDDDD era MESMO assustadora!
EliminarLembrei-me da casa de uns familiares em Portalegre onde passávamos algumas noites nas férias. Não fosse ter a minha irmã, mais velha que eu 5 anos, comigo e teria morrido aterrorizada. Tinha para aí 5 anos e ainda hoje, aos 37, sinto medo quando me lembro daquela casa. E das portas que pareciam de elevadores. E dos relógios de cuco de colecção que se punham a cantar todos em simultâneo... credo! Entendo-te bem, eu também não me sentiria muito confortável em lá voltar...
ResponderEliminarBrrrrrrrrrrrrrrr... :D
EliminarEna que grande descrição como sempre, já agora, hoje eu tenho mais uma entrevista no blog das boas!
ResponderEliminarNo blog das boas?
EliminarQuem são? Aquelas distinguidas no blog da Salmora?
Para que conste, isto também é meu!
EliminarE mais não digo.
Fiquei curioso... bom bom era ver umas fotos!
ResponderEliminarSe me deixarem entrar… :)
EliminarOra bem! Uma malha de cada vez, que duas de seguida não há mulher que aguente. Para reservado o direito de admissão na consagração blogosférica, a menina já foi à vida!
EliminarBotada para escanteio, sem apelo nem agravo!
E mais não digo!