Como o assunto continuava pendente vai para sei lá quantos
anos, combinei finalmente com o meu primo ir tratar da questão, tinha que ser,
era hoje ou nunca, e então lá fomos os dois, metemo-nos no carro e arrancámos
em direcção à herança. Era dia de tomar posse do nosso edificado! Uma vez
chegados procurámos por entre as várias ruas o nosso espólio, a excelente
herança que todos nós ambicionamos receber um dia: um bonito jazigo.
Acontece que as coordenadas que nos tinham dado não
conferiam exactamente e não demos com o jazigo, e então começámos a andar por
ali fora, num tour pelo cemitério, uma experiência bizarra que foi tomando
conta de mim, transformei-me numa investigadora diplomada a espreitar por todas
as janelinhas, as casinhas com os seus caixões e mesas-de-cabeceira repletas de
molduras com fotografias dos defuntos que ali residem, outras, com um decor
mais aprimorado, incluíam crucifixos, santinhos, flores de plástico,
candelabros, mantas, sapatos de quarto e passarinhos de loiça, num mundo
paralelo ao nosso onde, aposto, os mortos se encontram nos jazigos uns dos
outros para conversas silenciosas à sombra dos ciprestes, imagino a rebaldaria
que para ali vai a altas horas da madrugada, excepto, talvez, nos jazigos em
ruínas, aqueles cujos mortos já não têm ninguém vivo, aqueles com flores de
plástico espalhadas pelo chão por entre a caliça das paredes esburacadas e que melhor
representam o esquecimento, nesses já não há vivalma, aí reina a deslembrança total,
são jazigos onde os mortos foram assassinados por ausência de recordação. Mas
bom, depois de espiar todos os jazigos e do meu primo estar aterrado com a
minha propensão mórbida, acabámos por nos deslocar à secretaria do
cemitério para tratarmos da papelada e nos indicarem qual era, afinal, o nosso
legado. E foi então que a Célia se debruçou sobre o computador e gritou lá do
fundo para a Mónica, enquanto teclava furiosa e repetitivamente a mesma tecla,
um teclar capaz de fazer ressuscitar todos os mortos em redor:
- Oh Móoooonica, o
Anúbis foi-se abaixo!
E eu então olhei em redor, então o Anúbis, o Deus Egípcio da
morte, estava ali?! O guardião dos túmulos tinha-se ido abaixo?! Coitadinho! Pudera,
com tanto trabalho é natural que se sinta mal, que isto os Deuses já não são o que eram! Mas a Célia voltou a
vociferar lá de longe:
- Oh Móoooonica, reinicia aí o Anúbis, faxavor,
E eu então
pensei que aquilo era uma private joke muito sofisticada entre as meninas da
secretaria, mas ao mesmo tempo aquilo foi dito com uma expressão tão vazia que
tive mesmo de lhes perguntar, e não, não era uma private joke, afinal Anúbis é mesmo o
nome do sistema informático dos cemitérios de Lisboa.