Tocava a campainha e instalava-se a confusão, de imediato se sentia o movimento, alguém atravessava o corredor e perguntava se era a da frente, a de trás ou a do consultório. É que, em sendo a de trás, era gente da casa, que entrava pelo portão e que sabia o caminho; em sendo a do consultório eram doentes a quem se devia abrir a porta da sala de espera onde ficariam sentadinhos e amontoados, com a mala sobre o colo, até à hora que senhor doutor decidisse comparecer. É que, nessa altura, não havia livros de reclamações e as pessoas, que prestavam a devida vénia aos lentes da medicina, ficavam tão agradecias por aquelas horas de espera, que traziam pela trela galinhas e perus que faziam fila no jardim, ansiosos por saltar para a panela do senhor doutor. Por último e em sendo a campainha da frente, as hipóteses multiplicavam-se, da mesma forma que se multiplicavam as formas de receber quem estava do lado de fora. É que, naqueles tempos, havia uma hierarquia rigorosa no que às visitas dizia respeito. Em sendo coisa sem importância, a pessoa era recebida de pé, no hall lá de baixo, para que não se demorasse mais que o necessário, a porta ficava entreaberta, como que convidando insistentemente a uma saída célere; um degrau acima, as honras deviam ser feitas nesse mesmo hall, mas a visita devia ser acomodada num canapé de palhinha que, ao que julgo saber, serviu apenas para receber o engenheiro Matoso, figura pequena e pouco apreciada, que namorava a alta e loira sobrinha dos meus avós e que não se decidia quanto ao aguardado enlace. Tanta indecisão incomodava os princípios católicos, apostólicos, romanos da minha avó que, amiúde, se sentava no canapé com o engenheiro Matoso contando-lhe a subtil história de uma senhora sua amiga que tinha uma sobrinha em idade casadoira e cujo noivo não se decidia. E essa história, que servia para averiguar das intenções do engenheiro Matoso, desenrolava-se na exacta medida do namoro da sobrinha Maria Amélia. Infelizmente tamanha pressão assustou o engenheiro Matoso que rapidamente repensou os seus sentimentos deixando a sobrinha Maria Amélia não só solteira como presa numa cápsula de tempo, envergando o mesmo penteado -uma poupa com um travessão ao alto - e as mesmas calças à boca-de-sino, ad eternum. Um nível acima, estavam as visitas que podiam subir as escadas, mas não podiam entrar em casa, eram visitas recebidas já com alguma pompa mas que não eram dignas de cruzar a porta guarda-vento que separava a escada da casa propriamente dita. A essas visitas, estava destinada a sala amarela, que devia o seu nome a um malfadado papel de parede que foi colado todos os dias durante uma semana, e que escorregou da parede todas as noites durante essa mesma semana, uma sala que tinha uma presa de elefante no chão, uma Juan Carlisse que, à época, se entendia conferir um certo exotismo a uma casa, na parede um par de fotografias dos dois infantes enquanto jovens bebés finamente emoldurados em talha dourada. Os sofás, relíquias de família, rangiam de tal forma, que os visitantes não se podiam mexer com receio que o mobiliário, atacado pelo bicho da madeira, se desfizesse sob o seu peso a qualquer momento. Ainda assim os visitantes iam dali bem impressionados já que, apesar de não poderem penetrar no reduto familiar, aquela era a sala mais santa da casa, a sala onde ocorreu "O" milagre. É certo que o milagre não foi ainda reconhecido pelo Vaticano, mas foi deveras importante; no fundo estamos a falar do nosso próprio milagre, "O" milagre de família. O milagre deu-se pelo tremor de terra algures nos anos sessenta, em que a Nossa Senhora ao cair do armarinho onde estava carinhosamente acomodada, aterrou graciosamente e em pé no meio da sala. A minha avó contava muitas vezes que, logo a seguir ao abalo, abriu a porta e deparou-se com a Nossa Senhora ali, caída, no meio da sala, de pé e de mãos postas, tendo sido poupada a todos os males excepto o da decapitação. E, ao ver que aquela imagem, a que não fora esse pequeno detalhe de lhe faltar a cabeça, estaria praticamente intacta, teve a certeza que estava perante um milagre e isso, claro, tinha muito valor. Para os mais íntimos, tínhamos o cantinho da televisão, o cantinho onde eram conduzidos, por exemplo, a Sra. D. Francisca e o Senhor Coronel, pessoas que se apresentavam todas as santas noites para o cafezinho, a Sra. D. Francisca, Xica para os íntimos, sofria horrivelmente de Parkinson, o que dava um encanto especial aos seus brincos de brilhantes que, com os tremeliques, lançavam faíscas de luz que davam um glamour especial ao cantinho da televisão, ambiente que dificilmente seria alcançado de outra forma. Aliás, numa das mil e uma noites que lá foram a casa resolveram sair mais cedo e, ao passarem pela casa-de-banho a que eu inadvertidamente me esquecera de fechar a porta, em vez de seguirem em frente e fingirem que eu era transparente, sentiaram-se tão próximos, tão íntimos da casa que pararam e me disseram "boa noite", e eu, sentada na retrete, humilhada até à medula, com as perninhas que não chegavam ao chão a-dar-a-dar, retribui educadamente as boas noites à Sra. D. Xica e ao Senhor Coronel. Claro está que a partir dessa noite, nunca mais mais me esqueci de fechar a porta da casa-de-banho... à chave de preferência. Por fim, e para as visitas gloriosas, tínhamos a sala azul, assim baptizada em honra dos tapetes que eram acompanhados de uns fulgurante cortinados da mesma cor, uma tapeçaria duma caçada na parede de topo, uns lustres de vidrinhos e um sofá de veludo amarelo-dourado. As visitas da sala azul, apesar de serem certamente umas visitas muito boas, não ficaram, infelizmente, na minha memória. Na minha memória, ficou apenas o sofá de veludo amarelo-dourado que picava as pernas como serapilheira.