- Porque descobri que não poderei continuar a ser snob-chic...
- Como assim, Palmier? Uma menina tão bonita, com tão bom gosto, um nível cultural mundialmente reconhecido que vem de há dezassete gerações, a dizer uma coisa dessas?
- Mas é a verdade fada-madrinha, é a mais pura das verdades... é por causa daquela coisa...
- Qual coisa, Palmier? Nada pode ser assim tão grave?! Disse a fada-madrinha com voz doce.
- Nem queira a fada-madrinha saber, é que nem tenho coragem para revelar... é demasiado terrível.
- Vá, vá Palmier, minha linda, vamos secar essas lágrimas, respirar fundo e esclarecer essa questão, vai ver que não passa de uma simples confusão.
E, para secar as lágrimas de Palmier, a fada madrinha transformou de imediato o seu chapéu-de-chuva transparente com nuvens azuis, num lenço de linho branco com o monograma de família.
- Mas é a verdade fada-madrinha... é que eu tenho a mania de fazer aquela coisa...
- Qual coisa Palmier? Vá, minha querida, não me assuste...
- É aquilo, quando saio do escritório...
- Palmier, minha linda, tem de ser mais clara...
- Aquilo da éme-oitenta...
E a fada-madrinha, com olhos arregalados, inspirou o ar em golfadas rápidas e curtas e, prendendo a respiração, perguntou aterrorizada:
- Éme-oitenta, Palmier?!
- Sim, sim, fada-madrinha - diz Palmier, rebentando numa torrente de lágrimas enormes e redondas que rapidamente se transformaram num riacho e depois num rio, um rio largo de águas rápidas e cascatas assustadoras. E, como que abrindo um dique, Palmier revelou mais, revelou tudo!
- Sim, fada-madrinha! Quando saio do trabalho, entro no meu carro, o alemão, aquele que a fada-madrinha me ofereceu quando transformou aquele eisbein com chucrute numa viatura topo de gama, lembra-se? Pois então, ele liga-se logo na éme-oitenta e eu, não contente com isso, fada-madrinha, ponho a música muito alto. Tão alto que os vidros vibram, pum, pum, pum, e tão alto que não oiço a minha própria voz enquanto canto. E como eu canto alto, fada madrinha...
E a fada-madrinha, mãos sobre o coração, tenta proferir algumas palavras, mas o som, o som teima em não sair.
- É que eu sei as letras de todas as músicas de cor fada-madrinha e, pior, faço uma pequena dança de acompanhamento enquanto conduzo...
E a fada madrinha, olhar horrorizado, boquinha aberta, prestes a desfalecer.
- Mas não é tudo...
- Como assim, não é tudo?! Não é possível haver mais, Palmier! A menina é a experiência de uma vida! O meu case-study de total makeover! disse a fada-madrinha enquanto recuava uns passos, tal a magnitude do choque.
- Mas há fada-madrinha, há! E agora que comecei, tenho de confessar toda a extensão do meu pecado...
- Nãoooooo... não consigo ouvir mais, gritou a fada-madrinha, girando sobre si própria e correndo em bicos de pés para longe, com passinhos de fada-madrinha ao mesmo tempo que tapava os ouvidos com as suas mãozinhas de fada-madrinha.
- Tem de me ouvir, disse Palmier, correndo atrás dela, perseguindo-a com aquela revelação ruinosa. Deixe-me terminar, por favor... É que às vezes chego mesmo a ter pena que o trajecto trabalho-casa demore apenas sete minutos e, então, para prolongar aquele momento, dou umas voltas pelo meu bairro, escolho as ruas que sei que têm colégios e que, àquela hora, estão entupidas, que sempre demora mais um bocadinho, e, caramba fada-madrinha, aquilo é catártico, é melhor que um SPA!
E, perante aquela revelação, a fada madrinha, não suportando o choque, mergulhou no rio de lágrimas, sucumbiu às correntes e o encantamento que pairava, havia anos, sobre Palmier, quebrou-se. O topo de gama transformou-se de novo numa travessa de eisbein com chucrute, os óculos de massa pretos transformaram-se nuns óculos de metal dourado com arabescos, as roupas top em artigos duvidosos da Primark, os livros do Philip Roth em simples livros de Paulo Coelho e as fotografias do seu blog... as fotografias do seu blog transformaram-se naquilo que sempre haviam sido... fotografias de gatinhos com corações.