A minha avó fumava. Pior, a minha avó fumava como uma adolescente, fazia-o às escondidas e muito depressa, não fosse alguém apanhá-la com um cigarro na mão. Fumava o seu cigarro quase todo de uma vez, a cinza ficava enorme e retorcida, mas nunca chegava a cair, era deitada in extremis para o cinzeiro e daí era levada muito rapidamente para o caixote do lixo, porque aquele baton cor-de-rosa que ficava marcado no filtro era por demais incriminador. Claro que, sendo esta uma prática pecaminosa, comprar cigarros tornava-se numa tarefa quase impossível, já que, por um lado a minha avó não saia muito de casa, que já se sabe que uma senhora não anda assim sozinha pela rua, por outro, porque mesmo que se aventurasse a sair sozinha, entrar numa tabacaria para comprar um maço de cigarros estava completamente fora de questão. Assim sendo, restava-lhe a Vitória, uma empregada mais nova mas extremamente confiável a quem ela dava o dinheiro e dizia:
- Vai ali comprar um maço de Ritz para a menina.
A menina era a minha mãe, que lhe servia de testa de ferro nestes difíceis assuntos do fumo. Às vezes, quando não encontrava forma de mandar a Vitória na sua missão ultra-secreta e os Ritz se acabavam, a minha avó dizia à minha mãe:
A menina era a minha mãe, que lhe servia de testa de ferro nestes difíceis assuntos do fumo. Às vezes, quando não encontrava forma de mandar a Vitória na sua missão ultra-secreta e os Ritz se acabavam, a minha avó dizia à minha mãe:
- Dá-me lá uma coisa dessas para ver a que sabe. E então pegava no cigarro que a minha mãe lhe dava, fumava-o num ápice e, quando chegava ao fim colocava-lhe invariavelmente a mesma questão:
- Tu gostas mesmo disto?
Claro que a minha avó não fumava em frente ao meu avô, afinal tinha uma reputação a manter. A sorte era que o meu avô tinha por hábito de operar os doentes depois do jantar. Fazia as consultas durante o dia, vinha jantar, repousava um pouco, bebia o seu Brandy aquecido na lamparina, via a televisão e descia para a para a sala de operações. Meia hora antes pegava no telefone, ligava lá para baixo e dizia invariavelmente a mesma coisa:
- Dá um injecção de Demerol e Fenergan ao doente.
Era nesse momento que começava a contagem decrescente e assim que o meu avô se levantava, estava iniciada a hora de fumo, hora de adolescente, porque a sessão de fumo era feita à janela do quarto, sendo a aspiração feita dentro das quatro paredes, não fosse dar-se o caso de alguém na rua ver a brasa incandescente do cigarro, e a expiração feita para a rua, não fosse o ar dar sinais de que alguém estivera a fumar dentro do quarto. Em dias de calmaria a proeza do cigarro mostrava-se mais facilitada já que, em vez de se retirar para o quarto, a minha avó ia antes para a varanda, onde, encostada no parapeito e envolta pelos ramos da buganvília, podia fumar sem grandes cautelas.
Acontece que a hora de fumo coincidia com a hora de bebedeira do Romeu Embrulho, um homem da estiva, que começava a beber assim que acabava de descarregar o peixe do fundo das traineiras e só parava quando se deitava na cama. Por essa hora o Romeu Embrulho cambaleava no largo para o qual dava a janela do quarto e seguia rodeando a casa e passando pela buganvília. Seguia não será o termo apropriado porque havia paragens no meio do largo ou debaixo da buganvília, consoante a minha avó se encontrasse no quarto ou na varanda, paragens que o Romeu dedicava à oração. Na sua bebedeira o Romeu idolatrava duas Santas, a Nossa Senhora de Fátima em segundo lugar e, em primeiro lugar, bem destacada, a minha avó. Perscrutava atentamente a janela do quarto, rodeava a buganvília e se sentisse sinais da sua santa erguia os braços, ajoelhava no meio da rua, fazendo assim parar o trânsito, e iniciava a sua fervorosa reza:
- Senhora cheia de graça que estás aí no alto, dá-me o perdão, roga por mim, pecador, pede por mim a Deus, minha Senhora, minha santinha, dá-me a tua benção...
- Senhora cheia de graça que estás aí no alto, dá-me o perdão, roga por mim, pecador, pede por mim a Deus, minha Senhora, minha santinha, dá-me a tua benção...
E a minha avó, incomodada, dizia lá de cima, de forma ríspida e altiva:
- Vai-te embora daqui, Romeu. Estás embriagado.
E era assim, sem quaisquer remorsos, que a minha santa avó, decidida que estava a praticar o pecado do fumo, despachava o seu devoto Romeu.
- Vai-te embora daqui, Romeu. Estás embriagado.
E era assim, sem quaisquer remorsos, que a minha santa avó, decidida que estava a praticar o pecado do fumo, despachava o seu devoto Romeu.
:D
ResponderEliminarso nice!
Coitado...
ResponderEliminar...era um Romeu sem Julieta...
LOL
:)
:D
EliminarGrandes histórias!
ResponderEliminarA tua família é demais Palmy! :D
ResponderEliminar:)
EliminarAhahahahahahahahahahah SG Ritz? Ou era SG (ventil, filtro ou gigante) ou era Ritz. Ai que a menina não percebe nada disto.
ResponderEliminarPois era! :D fui ver e era só Ritz. Eram estes:
Eliminarhttp://obviousmag.org/archives/uploads/2006/060213_ritz.jpg
Pois era, Palmier, pois era.
EliminarOh pá... Não tenho mesmo pachorra para estas histórinhas. Não entendo porque é que isto interessa a alguém!
ResponderEliminarOh pá... Não tenho mesmo pachorra para estes comentários. Não entendo porque é que isto interessa a alguém!
Eliminar(já lhe ocorreu que me pode interessar a mim? É que, em parecendo que não, o o blog ainda é meu...)
Eu, que estou do lado de fora, explico-lhe, caro Anónimo: isto interessa aos que gostam de ler textos bem escritos, aos que gostam de relembrar a vida de outros tempos, até aos que têm algo de "voyeur" da vida alheia (temos todos um pouco, não é?).
EliminarO que eu não entendo é o que está aqui a fazer, com tanta falta de pachorra. :-D
:)
EliminarClaro que sim Repare: o blog é seu, o comentário é meu! Ui ui que difícil perceber. Além disso, a sua escrita é sofrível. Aguardo resposta do meu familiar (tenho muita pachorra para isso).
EliminarBoa! Excelente conclusão, "Lili Caneças Style"!
Eliminar(Só não percebo por que razão perde tempo com este blog...)
Ah Ah Ah Ah Ah
EliminarSofrível? A Palmier tem aqui uns anónimos tão engraçados!
Não ligue Palmy! Adoro as suas estórias do antigamente :)
:)
Eliminar:))))
EliminarJá eu, acho que as histórias da família da Palmier são o ponto alto deste blogue. A par da grande obra, é claro... sem esquecer a Cutxi... e o Canis!!
EliminarGosto tudo daqui, principalmente a qualidade da escrita, cabelo incluído, excluindo os casacos e para não parecer uma Palmierette doida, tenho 1 crítica a fazer: escreve pouco sobre a família!
(e o anónimo "não entende"... é isto mesmo. Não entende)
:DDDDDDDDDDDD
EliminarAi... não gosta tem bom remédio. Ande para a frente que atrás vem gente. Gente que muito aprecia ler estas histórias. E a mestria com que esta senhora as conta, oh oh!
EliminarAnónima, obrigada pelo comentário. Não o vou publicar porque achei que ninguém iria reconhecer o Romeu :) pelo que lhe mudei agora o apelido (que nem sei se era apelido ou se o chamavam assim por alguma outra razão) :))))
ResponderEliminar(esse outro que refere, era um que andava vestido de Cristo?)
Nao o o cristo era outra personagem tambem da cidade.O palmeira era um velhote de bengala que andava sempre a pedir no cafe "abrigo" e quando a filarmonica tocava ele andava sempre a frente a comandar. O romeu todas as pessoas o conheciam por aquele nome era uma pessoa sem familia que vivia de caridade no armazem das redes pertencente à estiva
ResponderEliminarEsse não me lembro, e eu também adorava ir atrás da filarmónica! :DDDDDDDDDDDD
EliminarO seu avozinho devia ter sinusite... O meu pai , ou era arraçado em perdigueiro ou eu fumava uma marca muito reles, porque lhe sentia o cheiro 4 ou 5 horas depois, mesmo com a dentuça lavada e tudo.
ResponderEliminarFumar ás escondidas tem que se lhe diga. O Romeu acatava, vá lá... o meu irmão mais novo era um "chibo" o malandro :) :) :)
:)))))
EliminarAdorei este texto.....Transportou-me para aquela época....... Parabéns.
ResponderEliminar:)
EliminarAdorei o texto. A minha avó também fumava, no alto da sua altiva elegância loura e de olhos azuis (que não calhou a nenhum de nós, mais novos - a elegância e o gosto pelo tabaco) e o teu texto fez-me lembrar algumas histórias desses tempos :)
ResponderEliminarComo fumadora de Ritz que fui, chocou-me imenso a colagem ao SG, detalhe que arruína totalmente uma história .
ResponderEliminarJá vi que houve mais alguém que também reagiu.
( nem calcula a importância destes detalhes !!!!!!)
(pronto, pronto! Já corrigi :))))
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